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Os desafios da prática da Lei Maria da Penha: advogadas afirmam que a ideologia punitivista é injusta

A reportagem de O TEMPO conversou com as advogadas Adriana Ramos e Lívia de Meira Lima, autoras do livro "Lei Maria da Penha na Prática", publicado pela Revista dos Tribunais, selo editorial da Thomson Reuters.

Adriana Ramos e Lívia de Meira Lima são autoras do livro 'Lei Maria da Penha na Prática' | Foto: Arquivo pessoalAdriana Ramos e Lívia de Meira Lima são autoras do livro 'Lei Maria da Penha na Prática' | Foto: Arquivo pessoal

As advogadas relatam que, na capital, mais de 50% dos casos de violência doméstica foram denunciados na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) – onde, em tese, a chance de revitimização é muito menor –, mas esse é um desafio para todo o sistema de Justiça.

Leia na íntegra:

A lei Maria da Penha completa, em 2019, 13 anos. Como as senhoras avaliam a aplicação da lei em relação aos principais avanços e desafios?

O espírito da lei está claramente expresso: prevenir e coibir a violência doméstica. Desde que entrou em vigor, a Lei Maria da Penha foi alterada por quatro leis federais e influenciou diversas políticas públicas e institucionais. Motivou uma série de ações e projetos para coibir e prevenir a violência doméstica pelo país.

Algumas políticas públicas foram esboçadas, mas, conforme vemos nos Relatórios dos Planos de Políticas para as Mulheres, esbarraram em questões orçamentárias e falta de continuidade.

Hoje, o desafio é maior porque esta agenda tem sido deixada de lado. Restam ações pontuais que, embora sejam efetivas, ficam restritas a determinadas regiões.

Os desafios ainda são enormes. Como ocorreu em muitos países, nos deparamos com uma não redução do número de casos de violência doméstica no Brasil inteiro. Isso ao mesmo tempo revela os limites de uma atuação meramente repressora do Poder Judiciário, mas abre espaço para pensarmos novas formas de lidar com o tema. Sozinho, o Poder Judiciário não pode enfrentar a violência contra a mulher, que é estrutural.

Nesse sentido, o atual cenário político se apresenta como um grande desafio. É preocupante ver algumas propostas – como a chamada “Lei Neymar” – que demonstram como muitos ainda não entenderam a gravidade da violência doméstica e sexual no Brasil.

Mesmo após tanto tempo, na prática a aplicação da Lei Maria da Penha é desigual. Quais fatores levam a isso?

Desde que entrou em vigor, a Lei Maria da Penha enfrentou resistência de diversos operadores do direito. O questionamento de sua constitucionalidade é um exemplo.

Atualmente, são 226 Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM) no Brasil. A maior parte está nas capitais e nas regiões metropolitanas. A estrutura para atendimento das mulheres em situação de violência e processamento das ações, na prática, varia muito quando há um JVDFM.

O mesmo serve para as delegacias. Fizemos uma pesquisa em 2016 e percebemos que, na capital, mais de 50% dos casos foram denunciados na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam). Em tese, a chance de revitimização é muito menor nesses serviços.

Qual aspecto da lei ainda é difícil de implementar na prática?

A violência doméstica e familiar é multifacetada. Para além das resistências institucionais e sociais impostas por uma sociedade patriarcal, na prática, a mulher é desencorajada a denunciar a violência dentro do sistema de Justiça. Essas barreiras precisam ser eliminadas para que o acesso seja pleno. A decisão de denunciar um agressor quando ele está próximo é muito delicada.

Outros dois fatores que dificultam a atuação na prática são: a dificuldade de intimação dos agressores dos atos praticados, como o deferimento de medidas protetivas de urgência, e as barreiras que muitas mulheres enfrentam para denunciar as agressões em territórios dominados por milícia ou tráfico.

Houve alguma mudança de postura dos homens?

Há certo medo, mas que não se traduz em redução da violência. A prevenção geral negativa, isto é, a expectativa que determinada conduta considerada criminosa vá diminuir após a tipificação penal, é limitada.

Essa “coação psicológica” que a Lei Maria da Penha deveria causar nos agressores para evitar a violência doméstica não é eficaz. Isso mostra, por um lado, a força da violência misógina e os limites da lei penal na mudança de um comportamento social.

Como resolver a questão da subnotificação?

Percebemos que em diversas situações o serviço existe, a rede de proteção está estruturada, mas as mulheres simplesmente não chegam. É preciso mudar os procedimentos, em todas as instituições que trabalham com mulher em situação de violência.

Não é a mulher que deve se adaptar a um procedimento padrão em delegacias, cartórios e audiências.

Quase tudo desencoraja a mulher a fazer a denúncia: a vergonha, o medo de ser destratada, o machismo que quase sempre coloca a vítima como causadora da agressão. Essa revitimização ocorre durante todo o sistema de Justiça.

As senhoras acreditam que a Lei Maria da Penha ajudou a criar outras leis de proteção, como a do feminicídio e a de importunação sexual?

A Lei Maria da Penha é um marco para a luta do movimento de mulheres. Nasceu de uma recomendação internacional da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

O feminicídio ganhou destaque após a condenação do Estado mexicano no caso “campo algodonero”. A tipificação do crime de importunação sexual surgiu após a exposição de inúmeros casos de violência, especialmente nos transportes públicos.

O crime de estupro coletivo somente foi tipificado após a exposição de casos assustadores e gravíssimos como o de Castelo do Piauí, o de Queimadas e o que ficou conhecido como o estupro dos 33 homens no Rio de Janeiro.

Há uma tradução das pautas dos movimentos de mulheres em termos estritamente punitivos. Esta é a leitura que o Estado faz. Talvez porque seja mais fácil criar um tipo penal novo e continuar uma política de encarceramento do que pensar em estratégias para uma vida livre de violência.

A pecha de punitivista que atribuem à Lei Maria da Penha é injusta. O que ajuda a criar novos tipos penais é a violência misógina em seu aspecto multifacetado, não uma lei de proteção. São os descasos e conivência dos Estados que só se mexem depois de condenações internacionais.

A Lei Maria da Penha é muito maior do que a criação de novos tipos penais. Ela é um novo paradigma para atuação de todo o sistema de Justiça de forma integrada, na criação, inclusive, de políticas públicas.

Em que proporções a Lei Maria da Penha fez avançar as questões de segurança feminina?

A preocupação primeira da Lei é a proteção da mulher em situação de violência. O artigo 8º da Lei traz um rol de medidas que, se adotadas de forma eficaz e integrada, pode ter um impacto real na redução da violência.

No entanto, a realização dessas ações implica em vontade e articulação política. As medidas protetivas de urgência se mostraram um avanço, mas carecem de eficácia. Vemos muitos feminicídios sendo praticados com medidas protetivas em vigor.

É preciso discutir violência de gênero nas escolas, repudiar a reprodução de estereótipos de gênero em discursos de representantes políticos e nas mídias, promover mais estudos com perspectiva de gênero e raça.

Tudo isso tem um impacto real na segurança das mulheres e está disposto no art. 8º da Lei Maria da Penha; precisamos olhar melhor para ele.

Como as senhoras imaginam que a lei vá funcionar daqui a dez anos?

Primeiramente, sem retrocessos nos direitos já conquistados. Passos importantes foram dados, mas ainda é pouco. Precisamos pensar em instituições a partir de uma perspectiva de gênero, compreender que a cultura da violência não se modifica apenas com alterações legislativas, mas com educação e prevenção.

Temos uma pauta pendente no Brasil que é a inclusão de conteúdo de igualdade de gênero em todos os níveis educacionais públicos e privados, conforme recomendação do Comitê Cedaw da ONU. Acreditamos que só assim realmente teremos mudanças significativas rumo à igualdade de gênero no Brasil.

Com Super Notícia



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