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Ética “como viver?” - Coluna de Filosofia, por Felipe Soares

A grande questão da ética, a de maior relevância e generalidade, acredito ser: “como viver?”. Essa convicção implica em expandir a consideração ética para limites muito maiores do que o mero campo da ação, que geralmente circunscreve o âmbito da ética num primeiro olhar. Proponho que notemos que a dimensão ética, tomada em amplitude, abrange muito mais que o agir: refere-se também às escolhas, às disposições, à afetividade, à racionalidade e seus desdobramentos práticos. O elemento principal e o conceito-chave da ética é a liberdade, e não a ação, pois mesmo o não-agir possui uma dimensão ética.

 

felipe_01felipe_01Pensar e sentir a profundidade e a amplitude da pergunta “como viver?”, radicalizada no fenômeno da liberdade e na reflexão isenta de pressupostos religiosos, como que nos joga num vazio, num momento de indeterminação, numa sensação de algo angustiante (os religiosos sabem que a religião conforta, preenche e dá direção; com essa observação não aponto um erro da religião). Uma consideração mais atenta e “auto-sincera” das respostas que podemos formular as indagações éticas também é capaz de nos mostrar, com uma nitidez perturbadora, que algumas coisas que normalmente vemos como sendo necessárias, verdadeiras, naturais ou caminhos únicos são apenas possibilidades.

 

Possibilidades mais ou menos aceitas ou recomendadas socialmente, mais ou menos ao alcance das nossas mãos, mais ou menos suportáveis ou desejáveis por nós, mais ou menos dotadas de poder pela cultura; mas sempre possibilidades. Possibilidades entre outras, cujos índices de “melhor”, “feio”, “natural”, “na moda”, “primitivo”, etc, são colocados por nossa cultura, nossa mídia, nosso poder econômico, nossos preconceitos. As possibilidades efetivamente realizadas de como viver, isto é, aquelas postas em prática por pessoas e comunidades empíricas, são inúmeras e tão diversas. As possibilidades possíveis são, portanto, ainda em número maior – a antropologia bem se detém sobre esse tema.

 

Daí, podemos concluir que se, nós humanos, tivéssemos apenas um modo de viver, um modo único de nos colocarmos no mundo e com ele nos relacionarmos, sem escolhas possíveis, mergulhados em pura determinação na ciranda da existência, não haveríamos de pensar em ética. Porém, não é esse o caso.

 

Para usar expressões de Heidegger, somos seres lançados ao mundo, diante de possibilidades abertas para nós e em nós. Somos também eminentemente projetos de nós mesmos, em existência intersubjetiva, com disposições afetivas e compreensivas tramando o próprio ser no mundo, configurando uma verdadeira “cumplicidade ontológica com o mundo”, como diz Bourdieu. Mas relacionamo-nos com um mundo sem sentido ético em si mesmo, e sem qualquer sentido próprio. A significação do mundo não está no mundo, mas de algum modo em nós: na linguagem, no âmbito das idéias e afetos. Do sentido do mundo, o que existe de fato são, portanto, sentidos no plural, sentidos possíveis, doados à experiência pelas consciências, emprestados ao mundo sob a forma afetiva, compreensiva, imaginativa, por meio de conhecimentos, crenças, ações, disposições.

 

felipe_02felipe_02Como nos mostra bem a fenomenologia de Husserl, constituímos o mundo desde os mais simples atos de percepção dos mais simples objetos. Nesse mundo a ser constituído em vários níveis – transcendental, psicológico, intersubjetivo – encontramo-nos, como dizia Sartre, condenados à uma liberdade, liberdade cuja radicalidade chega a nos escapar na nossa atitude natural cotidiana: a liberdade de dar sentido ao mundo, a si mesmo, à propria experiência; a liberdade de poder afirmar, negar ou pôr em suspenso os índices ditados pela cultura e pela educação nas quais existimos individualmente. A liberdade que, de tamanha, amiúde nos escapa ao domínio da lucidez consciente, à vida prática, à afetividade espontânea e à racionalização teórica.

 

O problema da liberdade foi tratado por inúmeros pensadores ao longo do tempo. E há várias perspectivas sob as quais podemos pensá-lo. Entretanto, gostaria de indicar dois dos pensadores que têm me ajudado com mais proximidade a tentar responder para mim mesmo à questão colocada de “como viver?”. São eles Kant e Nietzsche. Não que eu – ou eles – acredite poder encontrar a resposta certa. E desconfio de quem pretende tê-la, tais como gurus religiosos, escritores e palestrantes de auto-ajuda, ou portadores de uma verdade revelada por qualquer meio. A liberdade a que faço referência impossibilita a indicação explícita do caminho efetivo para se viver da melhor forma possível. Não podem haver receitas determinadas para limitar a trilha do que é indeterminado e sem limites em si mesmo. Ninguém pode nos dizer quais possibilidades escolher, nem como fazer nossa vida da melhor forma. Ainda que alguém escolha se pautar nos ditames de outrem, ele escolhe fazer isso. É essa a liberdade inalienável a que não temos como nos furtar. “Siga a moda”, “coma frutas”, “assista à TV”, “reze”, “respeite os protocolos cerimoniais”, “faça academia”... Isso pode ser bom para alguns de nós, mas elas não respondem inequivocamente e universalmente à questão que nossa liberdade nos põe. Elas são possibilidades, e um olhar histórico ou antropológico nos mostra que são possibilidades transitórias e relativas.

 

O trecho de Kant que apontarei aqui nos fornece um interessante “princípio” moral, de força praticamente lógica, que tem relação com o aspecto universal e intersubjetivo da experiência e da ação humana. Já o trecho de Nietzsche nos fornece uma “alegoria” de força estética, que guarda relação com o aspecto particular e individual da experiência do ser humano.

 

Diante do fato de estarmos lançados ao mundo com outros que agem concomitantemente às nossas ações, e do fato de que as ações de uns repercutem no mundo e na vida dos outros, nossas escolhas não podem ser egoístas, isto é, tendo como referência apenas nós mesmos enquanto agentes. A dialética hegeliana já nos mostrava a função do reconhecimento intersubjetivo: eu delimito minha identidade através do outro, e esse outro é outro-eu, que pode agir para comigo da forma com a qual eu pratico minhas ações para com ele. O outro é um outro-eu, e eu sou o outro para o outro. “Eu” e “Outro” é só uma questão de perspectiva. A identidade e a alteridade mantêm uma íntima relação entre si. Minha ação e a ação alheia estão num mesmo patamar no plano prático: as duas emanam de um eu, as duas repercutem num outro. A vida em sociedade implica que minha realização interfere na vida dos outros e que a realização dos outros interfere na minha vida. Está justamente aí o mal-estar na civilização que Freud notou. Já que cada um de nós é - sob vários aspectos - um ser-com-os-outros, cujas ações repercutem nesse rio caudaloso da vida prática, há algo que podemos estabelecer como critério ético geral, que tenha em vista a co-existência humana? Kant nos oferece uma sugestão, chamada por ele de Imperativo Categórico:

 

“Age de tal modo que a máxima de tua ação possa ser elevada a lei universal”.

 

Tendo em vista tal imperativo, percebemos o absurdo contido no egoísmo e na inobservância da igualdade de condições éticas que todos temos por princípio. Por que meios posso justificar minha crença de que me é eticamente adequado agir com prerrogativas morais sobre outrem? O egoísmo é logicamente avesso à vida em sociedade. Desse ponto de vista, minha ação é anti-ética quando, caso praticada por todos, ela torna a co-existência humana impossível ou desequilibrada.

 

felipe_03felipe_03Mas também, diante da indeterminação presente nas camadas mais profundas da vida, seja no aspecto íntimo ou social, as escolhas nossas têm que valer a pena. Sentimos necessidade de nos realizar nelas e/ou por meio delas. A realização é a satisfação de anseios muitas vezes inominados, muitas vezes obscuros. E há tantas e tão diversas formas de satisfação (a clínica que nos diga). Para potencializar a busca e o eventual alcance do que vale a pena, é possível empenhar-se num cuidado de si, num ter-se em mãos para se ter consciência das próprias escolhas e metas, para se privar e se lançar nos momentos mais oportunos e nas coisas eventualmente mais adequadas; também para não fazer da própria vida algo caótico em relação às suas próprias determinações e disposições, nem algo heterônomo, regido por instância que não desejamos (porém, aqui vale observar que até mesmo o caos ou a heteronomia podem nos realizar e nos satifazer, na medida em que assim condescendemos ou desejamos).

 

É essa liberdade profunda que é inalienável – a liberdade de até mesmo poder se deixar determinar por outro, a liberdade de poder abdicar da própria liberdade. Essa é a liberdade existencialista a que estamos condenados – condenados a ser livres, como dizia Sartre –, e que nos angustia nos momentos em que o mundo, despido dos sentidos que damos a ele, se mostra a nós como faltante, alheio, não familiar, como carente de uma significação que independa da nossa própria racionalidade, afetividade e capacidade de ação. Esse recuo da atitude natural, atitude de olhar para o mundo de modo acrítico, com as lentes invisíveis da nossa cultura e dos nossos preconceitos, radicaliza e ilumina a questão “como viver?”, pensada sob o enfoque da realização e satisfação subjetivas. Sobre isso, Nietzsche nos oferece a seguinte imagem, chamada de O Eterno Retorno:

 

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?”.

 

Colocar nossas escolhas dentro da perspectiva do eterno retorno nos faz descobrir cores e matizes insuspeitos. Faça um teste você mesmo, leitor! Se a vida pode valer a pena, pode ser estetizada e fruída, por que não?

 

felipe_04felipe_04É no escuro da alma, no foro íntimo e apenumbrado da consciência, que se juntam as duas coisas que nos cobram a consciência moral: a necessidade de se realizar individualmente, colaborando ao mesmo tempo com a possibilidade de realização dos outros indivíduos; de ser feliz sem que, para isso, se dê lugar à infelicidade alheia; de poder contar com os outros, para que eles ponham em prática ações que não tornem a co-existência impossível ou desequilibrada.

 

Kant e Nietzsche não dizem nem que vale a pena entrar no ciclo do eterno retorno, nem quais orientações práticas podem ser elevadas à universalidade. Apenas iluminam um pedaço de chão sob o qual se pode pisar com algum norte, qual seja, a conciliação entre os dois aspectos: I) por um lado, o esforço de satisfação, o impulso estético e individual de fazer a vida valer a pena; II) por outro, a racionalidade do aspecto lógico e universal da coexistência humana, da interferência das vidas humanas umas sobre as outras.

 

À questão “como viver?”, apenas cada um de nós, ser-com-os-outros, pode responder, a partir da penumbra da sua consciência, da profundidade da sua liberdade, do seu desejo de satisfação e da igualdade formal disso tudo presente nos indivíduos. Concluindo: façamos por nossa realização, sem retirar aos outros as condições para que eles se realizem.


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