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O futebol

Todo fanatismo tende a ser estúpido e prejudicial. Porém, na contramão da razoabilidade, que deveria se desenvolver e se ampliar com o crescente avanço do conhecimento e da complexidade das relações sociais como um todo, nossos tempos parecem trazer em si os mesmos impulsos das épocas mais bárbaras de que temos
notícias nas páginas da história. Muitos dirão que tais impulsos são próprios da natureza humana. Concordo com eles. E mais: muitas vezes, o próprio conhecimento e as práticas em diversidade nas interrelações sociais, que deveriam dar ensejo à ampliação da sobriedade, podem hoje ser vistos como ferramentas utilizadas para a propagação do fanatismo.

O futebol é um fenômeno contemporâneo que tem o fanatismo a si sendo incentivado.

De início, é preciso frisar que não é fanático todo e qualquer torcedor de futebol. O tipo ideal, ou o paradigma do fanático, é aquele cuja paixão incondicional por algo – seja um deus, uma idéia política, ou um time de futebol – o torna cego para uma perspectiva exterior. O fanático ideal está disposto a exteriorizar com violência os seus impulsos em prol do seu ídolo, seja o que for, e, por que não, colocar sua própria vida em jogo contra “os outros” (caso eles existam), contra o bom senso, contra e acima da lei e da ordem social. Por isso, talvez, todo fanatismo se dá em bando e com ímpeto: em grupo, a responsabilidade se dissolve; não há indivíduos, há membros de um todo, que se identificam e se orgulham do comportamento uns dos outros e de fazerem parte de algo em comum. Porém, é verdade que há vários graus de fanatismo.

Pensemos no futebol, ou melhor, nos torcedores fanáticos. Há uma identidade grupal: eles têm os mesmos ídolos, conhecem as mesmas histórias ancestrais, têm uniformes, bordões de fala e prazer em se mostrar e se reconhecer como iguais. Conhecem nomes, datas e placares com precisão invejável. Citam de cor antigas escalações de times inteiros (e muitas vezes não sabem quem é o atual prefeito de sua cidade). Eles gritam, vibram, choram e sofrem com uma veemência que não se vê cotidianamente com relação a nenhuma outra coisa. Eles lotam os estádios, criam torcidas organizadas, enfurecem-se e extasiam-se com seus ícones. Compram e usam artigos esportivos e viajam para longe a fim de assistir ao time do coração! Eles discutem cheios de argumentos, mantêm-se informados diariamente, organizam a semana em função dos jogos e economizam para o ingresso.

A esses torcedores fanáticos, e também àqueles não-fanáticos que possuem algum grau de amor pelo seu time, a mídia e o mercado já atentaram há algum tempo com o cifrão nos olhos.

A mídia? Todos os jornais de diversidades dedicam páginas e páginas, e amiúde a primeira, para o futebol. Os canais de TV têm sempre programas sobre futebol, inclusive e principalmente nos horários mais nobres. Na internet, a mesma coisa: os sites de diversidades sempre têm manchetes relacionadas a futebol; há vários sites especializados com acessos numerosos. Faz-se estardalhaço com os comentários bombásticos, com as denúncias de fraude, com as possíveis transações entre times, com as contusões dos jogadores... Há serviços de SMS para manter o torcedor sempre informado das últimas notícias no mundo do futebol. Agora, há as transmissões em HD, câmeras flutuantes no campo, leitura labial dos jogadores! Há no mercado, com imensa facilidade e variedade, camisetas, agasalhos, bonés, pulseiras, chaveiros, adesivos, caixas de leite!, latas de cerveja!, artigos para bebês!, carteirinhas de torcedor e de sócio contribuinte, pacotão de jogos na TV por assinatura, preservativos, tudo com brasões dos times.

Em dia de jogo, todos, mesmo aqueles que não se importam com os jogos, são obrigados a compartilhar o som das festas, dos gritos, dos fogos, das cantadas de pneus e da violência quase sempre presente. Todos, mesmo os mais avessos ao futebol, têm que suportar o caos no trânsito e no transporte público nos trajetos dos estádios, a depredação do patrimônio que sempre acontece (é parte do amor dos fanáticos!), os investimentos milionários de dinheiro público em construção e reformas de estádios, a sujeira nos locais de comemoração e a insegurança pelos bandos apaixonados. A sociedade deve conceder como necessários a mobilização e o deslocamento das polícias de trânsito, das polícias civis e militares, dos corpos de bombeiros, de viaturas, ambulâncias e helicópteros, tudo pela segurança do torcedor.

O culto ao futebol: nossas crianças, ainda que sem qualquer maldade, são incentivadas a perpetuá-lo. Nossas mentes são encharcadas consigo pelas mídias e as prateleiras das lojas sempre nos lembram de que existem times. É esse o assunto no trabalho e no bar. É esse o motivo dos PA’s lotados em dias de jogos. É em torno disso a mais forte emoção que muitas pessoas já viveram! E é essa a maior paixão de muitos! Mas é em cima disso que muita gente ganha dinheiro. Milhões para cá e para lá (deve ser algo muito importante!), inclusive dinheiro público. E é isso que perturba as cidades e que cega multidões em pretexto de lazer.

Vendo tudo isso, assusto-me: isso é o futebol e a estrutura que incentiva o seu culto às beiras do fanatismo. Tanta energia psíquica e tamanha mobilização de estruturas sociais não poderiam ter algum outro fim, mais nobre, mais duradouro, mais importante? Justifica-se tamanho incentivo e apelo ao culto futebolístico? Será claro que isso não passa de um artifício dos seus destinatários econômicos para fazer vingar com vitalidade os seus contratos publicitários milionários e de exploração de imagens e produtos em geral? Milhões no passe de um jogador por alguns meses: não é será isso lavagem de dinheiro?

No fim das contas, o que importa ao torcedor é o entretenimento, as emoções despertas, o alvo idolatrado, o sentimento grupal, o conforto de saber que sua catarse é incentivada e justificada orgulhosamente por uma multidão de semelhantes. E que venha a Copa do Mundo! As empreiteiras e os políticos já estão de pé, sedentos, afiando suas facas à espera das licitações...

Só mais uma brincadeira: bolsa-família e futebol – será isso o redespertar do antigo dito latino “panis et circenses”?

(Antes que os comentários venham esbravejantes, digo que não tenho intenção de ofender ninguém com esse texto. Tenho muitos conhecidos, amigos e parentes torcedores e sou disposto a confraternizar numa boa festa pacífica com todos eles, mesmo que seu motivo seja alguma vitória de algum campeonato!)
 
 
Felipe Soares possui formação em Filosofia, tendo obtido a Licenciatura e o Bacharelado, com formação complementar em Letras e Ciências Humanas, em 2005 e o Mestrado, na linha de Lógica e Filosofia da Ciência, em 2008, pela UFMG. Estuda, escreve e desenvolve trabalhos como professor e músico.


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