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Felipe Soares

Coluna / Filosofia / O oco do mundo; e o nosso.

Há um furo na plena explicação do mundo, furo que se esconde e se mostra, ao mesmo tempo, no obscuro despropósito da existência de tudo; na engrenagem e no desenrolar do tempo; na distensão e no esticar do espaço; no perceber-se da consciência, objeto para si mesma, dotada de vontade, memória, imaginação, raciocínio lógico, capacidade de simbolização, de criação estética e outras tantas faculdades impressionantes.
Esse furo é propriamente impensável, incompreensível, está escondido no verso do ser, no cerne do existir inalcançável pela linguagem. Dele apenas se vislumbra uma ausência, um limite, o espaço em que falta algo, um mistério não respondido, a aporia última de toda ciência, argumentação, religião e metafísica.

Disso, fazem-se deuses, constroem-se religiões e, de certa forma e em alguma medida, contenta-se com a crença de que se tapou o furo, de que se respondeu o mistério, de que se encontrou o que está no cerne do ser e na origem do mundo. E mais, a partir de então, estipulam-se ritos e elaboram-se prescrições de como viver, valores com os quais se julgar, promessas, tabus, crenças, ídolos...

Assim, mergulhado na fé, que estia uma bandeira de respostas no horizonte do irrespondível e estende um manto de consolação sobre o leito da angústia do ver-se existente no mundo, esquece-se do mistério original. A simples compreensão da pergunta pela origem do mundo e da existência fica tão distante, tão rara; para alguns, até sem sentido, absurda.

Mas não apenas as religiões fazem isso; também as outras respostas arquitetadas sobre o mistério: quaisquer respostas da tradição, geralmente inquestionadas, mesmo aquelas arquitetadas em ciências e metafísicas. A teoria cosmológica do Big Bang, por exemplo, explica o quê acerca da existência, no fim das contas?! E o mito judaico-cristão da criação do mundo no Gêneses? E a metafísica platônica demiúrgica?

Por trás de toda resposta, persiste o oco do mundo.

E por analogia a esse furo ontológico do mundo, na sua existência e na sua compreensão, há um outro: um vazio psicológica e fenomenologicamente interno a nós mesmos, com características semelhantes às do vazio do mundo. E assim como para este último criamos deus(es), para aquele, criamos o amor. O amor às pessoas, às idéias, aos ideais e às atividades que elegemos para cobrir o vazio do nosso desejo, o oco da nossa experiência afetiva.

A(s) divindade(s) e o(s) amor(es) são obras do vazio, dos ocos da razão e da afetividade, das contracapas da experiência compreensível. São nascidos do que não podemos entender (as razões da existência) e do que não queremos sentir (a íntima solidão e angústia da consciência individual, que não pode apenas ser consigo, mas deseja realizar-se no mundo e alcançar objetos de satisfação).

Deus(es) e amor(es), ainda que nos guiem toda a vida, são intimamente fugidios, quiméricos, idéias da penumbra, investimentos lindos e imensos, mas frágeis. E são também, ao mesmo tempo, os pólos de investimento de subjetividade mais fortes que podemos conhecer: nada, provavelmente, movimenta tanto a humanidade, para "bem" ou "mal", para guerras ou convívios, para a vida e para a morte, para loucura e lucidez, quanto a religião e o amor, quanto as divindades e as coisas amadas. E suas fronteiras chegam a se misturar: ama-se o(s) deus(es); diviniza-se aquilo que se ama. Algumas religiões chegam à identidade: deus é amor; amor é deus em nós; deus nos ama; somos divinos, à imagem e semelhança do(s) deus(es).

O(s) deus(es) e a(s) coisa(s), idéia(s) e pessoa(s) amada(s) são meio fantasmas que decoram os vazios: são preenchimentos da linguagem e da libido, inseridos nos ocos, nos vãos, nas frestas. São como patchworks sobre os furos da experiência. São como uma lanterna que, com sua luz, dá alguma segurança, orientação, conforto e beleza a esta vida e a este mundo vivido, mas que no constante vácuo obscuro e irretratável que persiste por trás das respostas e das satisfações, não podem iluminar completa e nitidamente esta existência, tampouco nos dar garantias a que nos agarrarmos como a um ponto arquimediano, com apoio no qual alavancássemos toda certeza do mundo e toda satisfação do ego. Lanterna precária - por mais que aparentemente tenha luz firme - sobretudo diante da angústia, da morte, da incerteza do futuro, da dor, da ignorância, de todas as possibilidades de mudanças e de erros.

Pois encontramo-nos atirados ao mundo, como dizia Heidegger. Num mundo sem sentido nele mesmo. Num mundo cujo sentido é elaborado nos limites da linguagem, da cultura e da experiência - relativas, limitadas, moventes. E nesses limites, esbarramos nos dois ocos: no do mundo, revelado na incompreensibilidade da existência, e no nosso oco subjetivo, revelado na autopercepção de sermos consciências comunicando sentido à experiência, desejando sair de si e realizar-se em e com pessoas, objetos e atividades no mundo.

Assim, esforça-se tanto em manter esses remendos maravilhosos por perto e em devotar ações e desejos por sua presença. Precisamos decorar o mundo da vida, ainda que com remendos. Eles nos dão chão, nos tornam o mundo algo familiar, nos oferecem uma razão para viver (ou para morrer) e um sentido para suportar a vida quando ela dói. Eles constituem os chãos das culturas. Eles são pilares muito fortes para a experiência humana, embora alicerçados sobre os vácuos nos quais caem o raciocínio, ao abordá-los, e o desejo, ao buscar plena satisfação.

É por isso que religiões, cosmogonias, mitologias, metafísicas, filosofias, psicanálises, psicologias, psiquiatrias, auto-ajudas, artes, misticismos, terapias: todos vão se debruçar sobre um ou outro - ou ambos - os vazios, cada um a seu modo, com suas pretensões e pressupostos, com seus produtos e propostas. Mas os ocos da incompreensibilidade da existência e da insatisfação do desejo permanecerão constantes.

Dois ocos: um, tão além que nos transcende e nos abarca; outro, tão íntimo que nos configura e nos constitui.

Portanto, em meio a tudo isso, talvez não devamos esquecer a origem das respostas - as questões. Talvez seria frutífero que nos voltássemos mais às perguntas, para tentar sentir o peso de significação desses vazios. Pois tendo os ocos em vista, tornamo-nos mais livres para criar cada um a sua própria vida, interpretar por si mesmo a sua própria experiência e decorar seu mundo com as suas próprias respostas, na medida das suas experiências, capacidades e afinidades. Isso seria exercício de liberdade, de questionamento e autoconstrução, embora, repita-se, as eternas questões do oco do mundo e do oco da subjetividade persistirão por trás de toda resposta - sempre revisável - e de todo remendo da linguagem e da libido.

Encaremos a incompreensibilidade da existência e impossibilidade de satisfação plena do desejo e, em seguida, remendemo-nos, como quisermos e como pudermos. Decoremos nosso mundo e nossa vida, mas não nos esqueçamos dos ocos.




Felipe Soares
 possui formação em Filosofia, tendo obtido a Licenciatura e o Bacharelado, com formação complementar em Letras e Ciências Humanas, em 2005 e o Mestrado, na linha de Lógica e Filosofia da Ciência, em 2008, pela UFMG. Estuda, escreve e desenvolve trabalhos como professor e músico.

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