Eu tive uma filha em 1982 e me disseram que ela nasceu morta, mas, na verdade, levaram ela de mim” conta a dona de casa de 56 anos. Mesmo depois de tanto tempo, ela prefere não se identificar: “Essa história envolve dor” explica, enquanto seca as lágrimas de 36 anos de dor por ter voltado para casa do hospital com os braços vazios.
Tudo começou no dia 24 de agosto de 1982. A dona de casa veio de Dourados para Campo Grande para ter o bebê, já que sofria de hipertensão e o risco era grande. Chegando no hospital ela precisou fazer uma cesariana, teve eclâmpsia e não se lembra de nada do que aconteceu até 2 dias depois. No dia 26, ela acordou com o barulho de fogos de artifício e perguntou à enfermeira o que estava acontecendo, quando ela respondeu “Hoje é aniversário da cidade”. Foi quando percebeu que dois dias haviam se passado e viu que todas as mães no quarto estavam com seus bebês, menos ela.
A mãe conta que perguntou à enfermeira “Onde está meu bebê?” e ela lhe respondeu: “Alguém já vem falar com a senhora”. Nessa hora sentiu que algo estava errado. “Logo depois, uma enfermeira veio e me disse que minha filha tinha nascido morta. Perguntei pelo corpo e ela me falou que não estava mais lá, que era ‘praxe’ mandar os corpos para a universidade. Nessa hora eu fiquei desesperada, perdi o chão, é terrível você chegar para dar a luz e voltar sem seu bebê e sem saber o que aconteceu” relembra.
Ela teve alta e conta que pegou um ônibus para voltar a Dourados, operada e chorando muito pela perda da filha: “Ninguém sabe o tanto que eu sofri para secar o meu leite… nesses anos todos volta e meia eu pensava nela, que eu não dei de mamar, em como ela seria, mas, eu achava que ela estava morta… Você tem ideia de como é descobrir que ela estava viva o tempo todo 36 anos depois?” questiona emocionada.
A dona de casa já tinha uma filha de 5 anos e para suprir a falta da bebê que havia perdido ela adotou uma menina de 1 mês de idade: “A gente tem que aprender a guardar a dor da perda lá no fundo do coração para continuar vivendo”, conta. E assim ela foi levando, criando as meninas que hoje são adultas, aprendendo a conviver com o fato de jamais ter enterrado a filha que perdeu. Hoje ela ainda sofre de hipertensão e mal sabia que uma ligação mudaria sua vida depois de tantos anos: “O telefone tocou. Era noite e eu não ia atender porque não reconheci o número, mas, por alguma razão que não sei dizer, resolvi atender”.
“A pessoa do outro lado da linha me falou bem assim, ‘Eu sou da Polícia Civil de Campo Grande, trabalho com pessoas desaparecidas, você teve um bebê em 1982?’ e eu respondi que sim, mas, que ela nasceu morta. Foi aí que ela me respondeu: ‘Sua filha não está morta, ela está te procurando’ e nessa hora parece que o chão abriu, eu me senti caindo…” conta. Quando ouviu isso ela achou que fosse brincadeira, pensou em desligar, mas a pessoa do outro lado da linha pediu calma, começou a explicar a história e tudo começou a fazer sentido: “Eu gelei toda, fiquei desesperada… Ela me disse que era investigadora e que foi procurada pela minha filha porque ela descobriu um papel entre os documentos da mãe adotiva que morreu e nessa investigação chegaram até mim. Aí eu disse ‘Meu Deus, eu criei a filha dos outros e os outros criaram a minha!'” conta.
Quem estava do outro lado da linha era a investigadora Maria Campos, que trabalha no setor de pessoas desaparecidas ou desencontradas da Polícia Civil, na capital sul-matogrossense. Ela começou sua carreira em 1986 e, em 1998, investigou seu primeiro desaparecimento. Nesse período Maria já reuniu 674 mães com seus filhos. Há dois anos ela foi procurada por uma mulher que trazia um documento de “nascido vivo” e pedia ajuda para encontrar sua mãe: “A mulher sabia que era adotada. A mãe adotiva dela morreu em 2003 e quase 15 anos depois, arrumando as coisas da mãe ela encontrou dentro de uma bíblia um documento de nascido vivo contendo o nome da mãe biológica. Como a mãe que a criou havia adotado outra menina que morreu aos 3 meses, ela não sabia se o documento era sobre ela ou sobre a outra criança, então começamos a investigar” conta.
Durante o processo, Maria descobriu que em frente à casa da mãe adotiva morava uma enfermeira que trabalhava no hospital. Ela acompanhou o sofrimento da mulher quando perdeu a primeira filha e quando essa menina nasceu, ela “ofereceu” a criança para que fosse adotada: “A mulher recebeu o valor de 5 novilhas pela criança, foi até a casa, pegou uma roupinha da menina que morreu, levou para o hospital e voltou com a bebê nos braços”. A enfermeira que levou a menina foi a mesma que contou para a mãe biológica que sua filha havia nascido morta. “Descobrimos a identidade dela, mas essa enfermeira morreu há alguns anos” relata.
Teste de DNA
Depois de 2 anos de investigações, Maria chegou até a mãe biológica que mora numa cidade próxima a Campo Grande. Foi através de um B.O. em que a mulher foi testemunha que a polícia a encontrou. Depois do telefonema a investigadora percebeu que ela ficou muito nervosa e achou melhor viajar até a cidade para falar pessoalmente sobre o caso, e numa tarde de sábado foi até lá. Recebida com café e muita emoção, Maria contou que a filha a procurou porque estava de casamento marcado e queria a presença da mãe na cerimônia: “Eu não realizo encontros sem ter absoluta certeza de que se trata de mãe e filho, então resolvemos fazer um teste de DNA”, explica. O material foi colhido e o exame feito com urgência: “Fizemos o teste e ele ficou pronto em menos de 24 horas”.
A informação mais preciosa estava ali escrita no laudo com 99,9% de certeza: Positivo. Com o teste em mãos, o encontro foi combinado. Acontecerá no domingo, Dia das Mães. Para a senhora que passou a vida pensando que a filha estava morta, essa é uma segunda chance dada por Deus para curar uma ferida que jamais fechou: “Eu tô muito feliz porque se ela não me procurasse eu jamais iria atrás dela, achei que tinha perdido minha filha. Agora eu ganhei uma filha e uma amiga” sorri emocionada, abraçando a investigadora.
Maria Campos viveu essa cena quase 700 vezes: o olhar de mães revendo rostos que o tempo mudou, o olhar dos filhos reconhecendo sua origem nos olhos da mãe: “É muito gratificante esse momento, chego em casa com a sensação de missão cumprida”.
Com G1