Os dois maiores desastres com barragens do Brasil – em Brumadinho (MG) e Mariana (MG) – envolveram estruturas classificadas como de baixo risco, com documentação em dia segundo a legislação atual e administradas por empresas de grande porte.
Mas só em Minas Gerais, por exemplo, há 400 minas paralisadas, sem controle ambiental ou completamente abandonadas, de acordo com levantamento da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam).
Se estruturas que contam com inspeções regulares e funcionários qualificados podem entrar em colapso, como assegurar a estabilidade de todas as barragens no Brasil?
Especialistas e auditores ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, considerando o modo como a fiscalização é feita hoje, é impossível saber ao certo quão seguras são as barragens brasileiras.
A agência depende de inspeções contratadas pelas próprias mineradoras. E não conta, segundo Papa, com um sistema eficiente para validar os dados fornecidos pelas empresas.
Além disso, há estruturas de mineração completamente abandonadas por companhias que cessaram suas atividades, como a barragem Mina Engenho, que fica na cidade Rio Acima, na Grande Belo Horizonte, e que é considerada de “alto risco”. A estrutura pertence à Mundo Mineração, do grupo australiano Mundo Minerals.
“A nossa gestão é muito falha, é reativa. A gente quer gerenciar o caos, mas não evitar que ele aconteça”, define a engenheira Rafaela Baldí, especialista em segurança de barragens e autora do livro Manual para Elaboração de Planos de Ação Emergencial para Barragens de Mineração.
Conflito de interesses
As barragens são classificadas quanto ao risco com base em relatórios de estabilidade que levam em conta critérios como o método usado para sua construção e o potencial de dano à vida humana que um eventual rompimento pode provocar.
A legislação brasileira prevê que as próprias mineradoras contratem empresas para realizar vistorias periódicas e inspeções. A frequência desse monitoramento depende do tipo de estrutura – as de alto potencial de dano devem ser acompanhadas quinzenalmente.
A Agência Nacional de Mineração (ANM) também deve realizar vistorias próprias em barragens de alto risco e avalizar os laudos fornecidos pelas mineradoras.
A barragem 1 de Brumadinho, da Vale, que rompeu matando ao menos 166 pessoas (há hoje 147 desaparecidos), era classificada como de “baixo risco” e “alto potencial de dano”.
Um laudo assinado por engenheiros da TUV Sud, empresa alemã contratada pela Vale, havia atestado a estabilidade da estrutura no final de 2018. As informações foram encaminhadas à ANM em dezembro.
Mas, em depoimento ao Ministério Público Federal, o engenheiro Makoto Namba, da TUV SUD, relatou ter se sentido “pressionado” por um funcionário da Vale a atestar a segurança da barragem. O funcionário mencionado por Namba negou, também em depoimento ao Ministério Público, que tenha insistido para que o engenheiro assinasse o documento.
O episódio envolvendo a Vale e a TUV SUD evidenciam a possibilidade de “conflitos de interesses” influenciarem a elaboração dos laudos.
“Quem contrata é a própria mineradora, então não é impossível dizer que há aí um conflito de interesses. Você tem um contratante interessado em determinadas características de laudo”, ressalta Uriel Papa.
Estrutura de fiscalização precária
Ainda que uma inspeção tenha cumprido os prazos e classificado as estruturas como de “baixo risco”, auditores do Tribunal de Contas da União (TCU), promotores e especialistas em segurança afirmam que o Estado brasileiro não tem, atualmente, condições de verificar a confiabilidade das informações prestadas por mineradoras e prestadoras de serviço.
Para Uriel Papa, do TCU, alguns mecanismos simples poderiam ser usados para mitigar os riscos de fraudes e imprecisões nos laudos.
Ele cita como sugestão criar um cadastro de empresas avaliadas e habilitadas pela ANM para realizar as inspeções. As empresas mineradoras teriam que contratar terceirizadas que já tivessem passado por uma avaliação e que constassem desse banco da agência reguladora.
“Você também pode exigir um rodízio dessas empresas, para evitar que uma mesma companhia seja sempre contratada pela mesma mineradora”, acrescenta.
Outras opções para mitigar riscos passam, segundo ele, por aumentar as sanções (multas e suspensões de atividades) às mineradoras que atrasarem o envio de informações ou que forneçam dados imprecisos.
Em 2016, após o rompimento da barragem de Mariana (MG) em 2015, que resultou na morte de 19 pessoas e na maior tragédia ambiental do Brasil, o TCU verificou que a ANM tem muito menos servidores do que precisaria para fazer uma fiscalização eficaz.
Na regional da agência em Minas Gerais, onde está localizada a maioria das barragens, havia apenas 79 funcionários, entre servidores da área administrativa e técnicos. O número adequado, segundo informação fornecida pela ANM ao TCU, era 384.
“E o número de funcionários caiu de lá para cá. Hoje são 74. O contingente corresponde a 20% do que deveria haver para que a instituição desempenhe adequadamente o seu papel”, afirma o secretário de Infraestrutura Hídrica e Mineração do TCU.
Em todo o Brasil só há 35 fiscais capacitados para fazer inspeção in loco nas barragens.
Ausência de plano original e plano de emergência (que seja útil)
Outro problema que fragiliza o controle sobre a segurança das barragens é a ausência de documentos com informações-chave para orientar uma inspeção de qualidade.
Para estabelecer um diagnóstico das estruturas de mineração existentes no Brasil, a ANM contratou uma consultoria em 2016 que analisou todas as barragens do país.
Na época, a empresa constatou que a grande maioria das 790 barragens não possuía o plano original da estrutura – documento que inclui os estudos geológicos e as investigações da fundação e dos materiais de construção originais da barragem.
Qualquer alteração posterior precisaria, segundo a auditoria contratada pela ANM, se basear nesse projeto. Mas, conforme as investigações de 2016, as barragens brasileiras vinham aumentado a produção e o tamanho sem fornecer o projeto original às autoridades de fiscalização.
Isso, segundo o relatório da auditoria contratada pela ANM, compromete integralmente a certeza sobre a estabilidade dessas estruturas.
Portanto, ainda que as barragens passem por inspeções que atestem a sua estabilidade, se o plano original tiver se perdido ao longo dos anos, a segurança estará comprometida, segundo essa avaliação.
“A fase de operação e o monitoramento da segurança da barragem não pode prescindir das informações de projeto. Essa lacuna impõe riscos à segurança da estrutura”, afirma o relatório da auditoria contratada pela ANM.
A ANM informou ao TCU que concedeu prazo de dois anos, contados a partir de maio de 2017, para que as mineradoras refaçam todos os estudos necessários sobre estrutura e materiais de fundação das barragens, caso não possuam plano original.
Rafaela Baldí, engenheira especialista em segurança de barragens, também cita a obrigação de as barragens possuírem um plano de emergência que calcule corretamente as probabilidades de um rompimento ocorrer e contenha as medidas necessárias para conter eventuais danos a funcionários, população e meio ambiente.
Segundo ela, embora a maioria das barragens tenha elaborado o documento, poucas adotaram as medidas necessárias para que o plano funcione em caso real de rompimento. O de Brumadinho, afirma Baldí, era claramente falho.
As sirenes que serviriam para alertar a população não chegaram a ser acionadas – parte delas foi engolida pela lama. E pelo menos dois funcionários responsáveis pela estratégia de evacuação morreram logo após o rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão.
Barragens e minas completamente abandonadas
Por fim, existem ainda estruturas de atividades de mineração que sequer seguem requisitos mínimos de segurança. São barragens ou canteiros de minério abandonados por empresas que encerraram suas atividades sem cumprir com a obrigação, prevista em lei, de monitorar e recuperar a área utilizada para a exploração de minério.
Relatório de 2016 da Fundação Estadual do Meio Ambiente identificou 400 minas paralisadas ou abandonadas em Minas Gerais. A maioria é de pequeno e médio porte.
“Vale ressalvar que este número não corresponde ao número total de minas paralisadas e abandonadas no Estado, e sim ao número de empreendimentos mapeados neste primeiro levantamento”, destaca a fundação.
Das 400 minas identificadas no levantamento feito entre 2014 e 2015, 96 representam “vulnerabilidade ambiental alta ou muito alta”.
“A maior parte destes empreendimentos apresenta uma grande área de intervenção e se encontra próxima a Unidades de Conservação, Áreas de Preservação Permanente e perímetros urbanos”, diz o relatório, que contou com vistorias in loco, mas apenas no Estado de Minas Gerais.
“Não adianta só fazer um mutirão de inspeções em todas as barragens. É preciso mudar leis, contratar funcionários e adotar regras que mitiguem conflitos de interesses”, diz o secretário de recursos hídricos e mineração do TCU.
Com Nathalia Passarinho, BBC