Um estudo coordenado por pesquisadores brasileiros e publicado na plataforma de pesquisas medRxiv encontrou uma potencial correlação entre a incidência da Covid-19 e a imunidade adquirida contra o vírus da dengue. O trabalho, liderado pelo neurocientista e professor catedrático da Universidade de Duke (EUA) Miguel Nicolelis, identificou que a curva epidemiológica do novo coronavírus foi substancialmente atrasada em regiões atingidas pela dengue neste ano e em 2019, uma correlação que aponta uma possível similaridade entre a resposta imunológica aos dois patógenos.
O artigo, disponibilizado no formato pré-print, ainda não foi revisado pelos pares e é assinado por pesquisadores da USP, Fiocruz e UFPB. Nicolelis, coordenador do Comitê Científico do Nordeste e membro das Academias de Ciência do Brasil, Vaticano e da França, suspeitou da relação entre as duas doenças enquanto estudava o padrão de disseminação da Covid-19 pelo país.
A cidade de São Paulo, sozinha, responde por 80% dos casos do país, concluiu o grupo. Um lockdown efetivo de 8 a 12 semanas no estado de SP e a interrupção do tráfego não essencial nas rodovias paulistas teriam freado a Covid-19 no Brasil, sustentam os autores. Além disso, o fluxo do patógeno pelas 26 das maiores rodovias federais, a exemplo das BR 101, 116, 163 e 364, representaram 30% dos casos.
Depois de meses analisando de que forma o Sars-CoV-2 afetou as diferentes regiões brasileiras, o acadêmico descobriu que o coronavírus não acompanhou a curva de crescimento do restante do país nos locais que sofreram duramente com a dengue em 2019 e 2020, como as regiões Sul e Centro-Oeste, que dialogam fortemente com São Paulo.
A descoberta se deu a partir da análise de boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde, que detalhavam a ocorrência da dengue no país, e a complementaridade entre os dados chamou a atenção de Nicolelis.
Estudo semelhante em Israel
Os pesquisadores, então, se debruçaram sobre a literatura científica e encontraram alguns artigos que apontavam situações similares. O mais abrangente deles, de Israel, analisou a sorologia de 99 pessoas que já haviam contraído dengue e identificou 22 falsos positivos para Covid-19 — ou seja, aproximadamente 22% de correspondência, taxa similar às calculadas pelo grupo.
Por fim, os acadêmicos avaliaram a curva epidemiológica das doenças nos países mais afetados pela dengue e a conclusão foi assombrosa: a correlação invertida se repetia em todos eles, com exceção da Índia. A cartilha em todos eles era a mesma: locais atingidos fortemente pela dengue foram poupados inicialmente pela Covid-19, diferentemente das regiões do mesmo país menos afetadas pela doença transmitida pelo Aedes aegypti, que viveram os piores cenários.
— Enquanto estudávamamos o fluxo de pessoas, reparamos que o crescimento de casos em alguns estados, como o Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina, não batiam com os dados de espalhamento — explica Nicolelis, reforçando que os estados têm fluxos com São Paulo, estado mais afetado no país. — A disseminação tinha que ter sido muito mais homogênea. Os casos cresciam muito mais na Região Norte, em lugares a 5 mil quilômetros de São Paulo.
‘Proteína N’
Nicolelis afirma que as notificações de Covid-19 também surgiram nesses estados no princípio da pandemia, mas logo estancaram, o que não coincidia com a dinâmica da doença no restante do país. A ocorrência também foi identificada em Belo Horizonte, com fluxo e no interior da Bahia, também afetados pela dengue.
O grupo comparou, então, a incidência da Covid-19 com a de chicungunha no mesmo período, e não encontrou correlação. A partir desse controle, descartaram a influência do Aedes aegypti e buscaram relações entre os dois vírus em estudos acadêmicos.
— Descobrimos por meio de trabalho de outros grupos é que existe uma proteína, a do nucleocapsídeo, também chamada de proteína N, presente tanto no vírus da dengue quanto no Sars-CoV-2. Ela é altamente imunogênica, ou seja, gera resposta imunológica nas pessoas infectadas a longo prazo. Também há relatos de um grupo de pesquisa que descobriu que drogas antivirais e o antibiótico rifampicina, usado para tubercuose, “grudavam” tão bem no coronavírus quanto na dengue. A possibilidade de uma reação cruzada passou a ser real — diz o professor da Universidade de Duke
Nicolelis lembra ainda que médicos de Cingapura relataram falsos testes positivos para dengue em pacientes que, posteriormente, acabaram diagnosticados com o novo coronavírus quando a doença começava a se espalhar pela Ásia.
Ele pondera que as conclusões ainda são preliminares, mas reforça que os resultados foram repetidos em 15 países da América Latina, África, Ásia e do Sudeste Asiático que sofreram com surtos de dengue. A exceção indiana, pondera o pesquisador, pode estar atrelada à alta densidade demográfica do país de 1,4 bilhão de habitantes.
Dengue desaba na pandemia
A “concorrência” entre as doenças também explicaria a queda vertiginosa de casos da dengue no Brasil durante a pandemia, diz Nicolelis, uma vez que antes da chegada do coronavírus ao Brasil havia um consenso de que o país superaria o recorde da dengue em 2019. Ele temia, inclusive, uma “tempestade perfeita” provocada pela doença, a gripe influenza, a Covid-19 e a chicungunha, o que não se confirmou.
— A partir da 11ª semana epidemiológica (da Covid-19), a dengue começou a cair vertiginosamente. Ninguém tinha plotado os mapas de dengue e coronavírus um do lado do outro, e o gráfico de dengue com o coronavírus do ano. Além disso, duas semanas atrás, a Opas divulgou um relatório mostrando que a curva da dengue estava caindo em todas as subrregiões das Américas, enquanto a da Covid-19 estava subindo — aponta Nicolelis. — Alguns falam em subnotificação da dengue, mas acreditar que isso aconteceu no mundo inteiro, ao mesmo tempo, é muito difícil. O isolamento social não foi igual no Brasil, nem em outros países do mundo.
O cientista defende que, a partir das teses elaboradas pelo grupo, haja um esforço para a análise de estoques de amostras sorológicas colhidas de pacientes da dengue e espalhadas pelo Brasil sejam testadas. Caso a proporção de falsos testes positivos para Covid-19 seja semelhante, os indícios que de que a proteína N é uma resposta promissora para o incógnito Sars-Cov-2 ganharão evidências ainda mais robustas.
Nicolelis afirma que há uma vacina japonesa contra a dengue no final da terceira fase de seus ensaios clínicos que poderia ajudar no combate da Covid-19, confirmadas as correlações entre as doenças. Uma segunda, já aprovada pelos EUA e pela União Europeia, tem efeitos colaterais indesejáveis para o cenário da Covid-19:
—Isso (a administração da vacina japonesa contra a dengue) não é algo que se faria tão rapidamente no mundo de fevereiro. Mas, na emergência em que estamos, talvez já exista uma vacina contra a Covid-19.
Com O Globo