Pouco mais de um mês antes da tragédia provocada pelo rompimento de uma barragem em Brumadinho (MG), na região metropolitana de Belo Horizonte, a Vale obteve autorização do governo de Minas Gerais para um projeto de expansão das minas do Córrego do Feijão, onde ocorreu o desastre, e de Jangada. Ambas fazem parte do Complexo Paraopeba.
No entanto, as obras previstas contrariavam algumas recomendações de segurança do relatório da consultora Tüv Süd, segundo engenheiros ouvidos pela reportagem. Elaborado em julho de 2018 a pedido da própria Vale, o laudo da companhia alemã atestou a estabilidade da estrutura, mas detectou problemas no sistema de drenagem e fez ressalvas – a estabilidade do alteamento estava no limite de segurança das normas brasileiras.
O estudo recomendou à mineradora ações que aumentassem a segurança e evitassem a liquefação, fenômeno verificado quando um material rígido passa a se comportar como fluido e uma das possíveis causas do rompimento da barragem em Brumadinho
O documento da consultoria recomendou:
- proibir explosões nas redondezas da mina;
- evitar o tráfego de veículos e equipamentos pesados;
- impedir a elevação do nível da água na estrutura.
Já o licenciamento para expansão das minas aprovado em 11 de dezembro pela Secretaria do Meio Ambiente (Semad) de Minas Gerais previa:
- uso de explosivos;
- retroescavadeiras para remoção mecânica de rejeitos;
- caminhões de grande porte para transportar materiais.
Procurada, a Vale afirmou que obteve a licença para a continuidade das operações da mina Córrego do Feijão e expansão da mina de Jangada no dia 12 de dezembro de 2018. “Nenhuma das atividades licenciadas foram iniciadas pela Vale”, disse a empresa em nota.
“No relatório emitido pela Tüv Süd em junho, não existe a recomendação expressa de paralisação das operações das minas. Essas detonações, portanto, eram realizadas de forma monitorada na cava das minas de Córrego do Feijão e de Jangada, estando de acordo com as recomendações da auditoria.”
As intervenções aumentariam a capacidade produtiva em quase 70%, passando dos atuais 10,6 milhões de toneladas de minério de ferro por ano para 17 milhões. Com isso, “a vida útil do empreendimento seria prolongada até 2032”, diz o parecer da Semad sobre o processo de licenciamento.
A secretaria informou que a Vale apenas entregou a declaração de estabilidade da estrutura, sem mencionar qualquer fator de risco.
Professor da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais, o engenheiro Carlos Martinez afirmou que as obras previstas na expansão das minas afetariam a segurança da barragem. “É uma aprovação que colocava a barragem em risco, e a Semad deu. Os técnicos não deveriam ter dado, e a Vale não deveria ter pedido”, disse em entrevista.
Fazia parte do programa de aumento da produção o reaproveitamento de rejeitos de duas barragens da mina do Córrego do Feijão: a Barragem I, que se rompeu em 25 de janeiro, e a VI. O objetivo era recuperar os finos de minério de ferro para produzir o pellet feed fines (PFF), usado na fabricação das pelotas (pequenas bolinhas de minério de ferro aplicadas na fabricação do aço).
Para isso, estava prevista a remoção mecânica por retroescavadeira na Barragem I, seguida por empilhamento e transporte. O projeto também cita explosões no Complexo Paraopeba. “Estão previstos desmontes por explosivos na mina de Jangada e o carregamento e transporte do minério e estéril por máquinas e equipamentos que podem gerar impactos de acústica e vibração”, diz o parecer da Semad.
Professor de engenharia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio e ex-presidente da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica (ABMS), Alberto Sayão concorda que detonações em áreas vizinhas das minas, assim como movimentações de caminhões, poderiam funcionar como gatilho para a liquefação.
“Num ambiente de mina de ferro, os caminhões são muito grandes, muito pesados. E, quando estão carregados com as pedras que são tiradas da mina, ele [o terreno] vibra, por isso que eles [autores do relatório] pediram para evitar”, explica Sayão. “São caminhões enormes, que fazem uma trepidação similar a um sismo de baixa magnitude.”
Uma troca de e-mails entre profissionais da Vale, da Tüv Süd e da Tec Wise, outra empresa contratada, revelou que a mineradora soube de problemas em sensores de Brumadinho dois dias antes do rompimento da barragem.
As mensagens foram identificadas pela Polícia Federal (PF), que colheu depoimentos de dois engenheiros da consultora alemã que eram responsáveis pelos laudos. Presos em 29 de janeiro, André Yassuda e Makoto Mamba deixaram o presídio na última quinta-feira (7).
Peritos e especialistas que se juntaram à força-tarefa de investigação do caso vão fazer estudos para saber se as explosões em minas vizinhas teriam ou não contribuído para a liquefação da barragem B1.
O que dizem especialistas
Carlos Martinez, da Unifei, se diz “chocado” com as análises feitas no relatório da Tüv Süd. Ele disse que o local deveria ter sido evacuado: “Eles tinham que ter tirado todo o pessoal. Eles foram muito arrogantes tecnologicamente”.
O professor Edilson Pizzato, do Instituto de Geociência (IGc) da Universidade de São Paulo (USP), analisou o relatório da Tüv Süd e disse que a metodologia é conhecida e utilizada mundialmente. Ele explicou que foi feita uma série de cálculos e testes com base nos indicadores aferidos naquele momento. No caso de qualquer intervenção, deveriam ter sido feitos novos estudos.
“Se fossem fazer uma detonação – ou obras que fossem ser realizadas – próximo dali, segundo o próprio relatório, isso poderia alterar aquelas condições que foram estudadas. Poderiam alterar essas condições e eventualmente deflagrar o processo [de liquefação]”, afirmou Pizzato.
“Com esse relatório [da consultoria alemã], seria muito preocupante executar justamente esse tipo de obra que ele [o projeto de expansão] está citando e que pode causar a ruptura. O relatório fala que está no limite e que precisariam executar estudos melhores.”
Parecer favorável da Secretaria do Meio Ambiente
Com data de 20 de novembro, um parecer da Superintendência de Projetos Prioritários (SUPPRI) – atrelada à Semad – recomenda a autorização da licença.
O documento diz que a Vale formalizou a obtenção do pedido da licença em agosto de 2015. O empreendimento licenciado compreendia uma série de novas intervenções para ampliação das atividades no Complexo Paraopeba.
Veja o escopo:
- Continuidade das operações da cava (grande buraco de onde se extrai o minério) do Córrego do Feijão;
- Implantação da Pilha de Disposição de Estéril (material com pouco ou nenhum minério) na mina do Córrego do Feijão;
- Continuidade e ampliação das operações da Pilha de Estéril da barragem Menezes (que fica na região);
- Recuperação de finos de minério da barragem I e VI da mina do Córrego do Feijão;
- Implantação de rejeitoduto (duto para transporte dos rejeitos da mineração) de 1.544 metros na mina do Córrego do Feijão;
- Disposição do rejeito em cava;
- Adequações da Instalação de Tratamento de Minério a Seco e Planta Semimóvel de Córrego do Feijão.
Voto único contra o licenciamento
O projeto de licenciamento requerido pela Vale envolvia três licenças:
- Licença Prévia;
- Licença de Instalação do projeto de expansão da mina do Córrego do Feijão;
- e Licença de Operação.
As três foram aprovadas em 11 de dezembro de 2018. O período do licenciamento é de 10 anos.
A câmara de Atividades Minerárias, que aprovou o pacote de licenças, é formada por representantes do poder público e da sociedade civil.
No dia da aprovação, havia nove pessoas presentes – o único voto contrário partiu da ambientalista Maria Teresa Corujo, a Teca, do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas (Fonasc-CBH). Para ela, cada licença deveria ser aprovada separadamente. “Nunca poderia ter sido as três licenças de uma vez”, disse, acrescentando que o processo teve “uma série de atropelos grave”.
Teca afirmou que a câmara não havia sido informada quanto às recomendações de segurança da Tüv Süd. “Nunca tivemos acesso a esse relatório. No processo de licenciamento, não são colocados os documentos que atestam a estabilidade. Nos pareceres técnicos da Semad, só foi informado que, em relação, à estabilidade está tudo garantido pelo auditor”.
Mesmo sem saber que a estabilidade da barragem estava no limite da segurança, Teca se opôs às obras, por considerar que a ampliação das atividades representava risco ao meio ambiente. Ela chegou a pedir três vezes que o licenciamento fosse retirado da pauta. De acordo com a ativista, a câmara teve pouco tempo hábil para analisá-lo.
Em seus pedidos de vista, Teca chamou atenção para o ponto que prevê a derrubada de 13,15 hectares de vegetação nativa em Área de Proteção Permanente (APP), o que, segundo ela, corresponde a 18 campos de futebol do tamanho do Mineirão.
Para a ativista, o processo de licenciamento é peça-chave para mostrar como funciona o “modus operandi da mineração em Minas Gerais”. Em sua avaliação, as licenças são apenas um efeito burocrático (“de cartório”), sem que de fato haja uma análise de monitoramento e controle ambiental e social.
Impactos na fauna, flora e oferta de água
O parecer da Semad detalha os impactos previstos com as obras e atividades de expansão no complexo Paraopeba da Vale. Entre as interferências listadas, além da derrubada de vegetação nativa, está a interferência nos recursos hídricos da região, o que poderia afetar a oferta de água nas comunidades do entorno.
Estão listadas como Área de Influência Direta (AID) o Povoado de Córrego do Feijão, o Bairro de Casa Branca, o Povoado do Tejuco, o Parque da Cachoeira e o Povoado de Monte Cristo.
Veja, abaixo, outros impactos, segundo o documento:
- Ruídos: as fontes de ruído da fase de operação são causadas pelas máquinas e equipamentos;
- Qualidade do ar: a emissão de materiais particulados e gases de veículos e equipamentos são os maiores impactos decorrentes da fase de operação com relação a qualidade do ar;
- Qualidade e Vazões de águas Superficiais: as fontes de impactos sobre as águas superficiais são semelhantes a da fase de implantação com o carreamento de sedimentos e de óleos e graxas decorrentes de abastecimento e manutenção de máquinas e equipamentos, podendo causar alteração nos parâmetros físico-químicos e assoreamento dos corpos hídricos;
- Instalação de Processos Erosivos: os impactos de processos erosivos são decorrentes da exposição do solo causada por supressão de vegetação e movimentação de terras principalmente;
- Perda de micro-habitat e indivíduos da fauna silvestre: as intervenções ambientais autorizadas neste parecer gerarão a perda de micro-habitats, de habitats significativos e, eventualmente, sem os devidos controles e de resgate, indivíduos da fauna silvestre.
Com G1