A partir desta segunda-feira (8), o mistério que envolve a morte de Lorenza Maria Silva de Pinho, de 41 anos, começa a ser desvendado. O principal suspeito do feminicídio, que ocorreu no dia 2 de abril de 2021, é o marido da vítima, o promotor André de Pinho, de 52 anos. Ele está preso no 3º Batalhão do Corpo de Bombeiros, na região da Pampulha, desde o dia 4 de abril do ano passado. A suspeita da Polícia Civil e a denúncia do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) apontam que Lorenza morreu após ser dopada e asfixiada. André é acusado de feminicídio e omissão de cautela de arma de fogo.
O caso é permeado por acontecimentos obscuros. Após embebedar Lorenza e colar adesivos com medicação antidepressiva na mulher, André a teria esganado. O plano seria matá-la por intoxicação, mas a combinação de cachaça e 40 adesivos antidepressivos “não deu certo”.
Depois disso, uma sequência de fatos impressionou a todos. Para a polícia, André chamou a ambulância com a mulher já morta, e o médico tentou fazer a ressuscitação e, inclusive, assinou o atestado de óbito. O marido chegou a mandar o corpo para uma funerária e a marcar o velório e a cremação – o que dificultaria o trabalho da perícia. A Polícia Civil, no entanto, a pedido do pai da vítima, encaminhou o corpo para o Instituto Médico-Legal (IML).
No local, o corpo chegou sem sangue. Foi difícil, inclusive, realizar exames. Nunca se soube o que ocorreu com o sangue de Lorenza. Em seu diário pessoal, ela escrevia que temia que André a matasse, contava que o marido não combinava com o pai e até que o casal tinha problemas financeiros.
Enquanto a sessão não começa, o pai de Lorenza, Marco Aurélio Silva, de 74 anos, espera que André seja condenado à pena máxima. “A maioria dos homens saem impunes dessa monstruosidade, e nós, homens, ficamos calados por causa do machismo latente dentro da gente. Não podemos aceitar o feminicídio”, desabafa. Há 16 meses, o aviador aposentado luta para que a morte da filha seja completamente esclarecida. Já a defesa do réu está esperançosa com relação à absolvição de André de Pinho. “Estamos muito confiantes para demonstrar a inocência do doutor André”, informou o advogado Pedro Henrique Pinto Saraiva.
O julgamento de André será bem diferente daqueles que se costuma ver diariamente. Por ser membro do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), ele tem o chamado “foro privilegiado”, ou seja, o futuro dele não será definido por sete pessoas comuns, e sim por 25 desembargadores.
O julgamento começa com a fase de instrução. Nesse momento, testemunhas de acusação e defesa são ouvidas. Segundo o procurador de Justiça André Ubaldino, membro da Procuradoria de Justiça de Crimes Dolosos contra a Vida, designado para o caso, é possível que compareçam 16 testemunhas para cada lado. A fase de escutar as narrativas não tem prazo. Dos 25 desembargadores responsáveis pelo julgamento, quem conduz o procedimento é o relator, o desembargador Wanderlei Paiva. O julgamento ocorre no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) – localizado na avenida Afonso Pena, 4.001, no bairro Serra, em Belo Horizonte. O réu pode acompanhar a dinâmica.
Entenda como é o julgamento de um promotor
Após o relato das testemunhas de acusação e, em seguida, das de defesa, o desembargador relator pode pedir novas diligências (investigações, perícia etc.), e novas provas (documentos etc). Depois que esse material é juntado ao processo, defesa e acusação fazem suas alegações finais por escrito. Na sequência, advogados e Ministério Público têm uma hora cada para as considerações finais orais. Nesse momento, os 25 desembargadores estarão presentes.
A última parte é o julgamento propriamente dito. Os desembargadores votam abertamente, e qualquer um pode assistir. O primeiro voto é o do desembargador relator. Os demais votam seguindo o regimento interno da casa (como a questão de tempo de serviço). Além de considerar o réu culpado ou inocente, eles também arbitrarão uma pena. Se não houver unanimidade, é feita a média das penas declaradas pelo grupo. A pena para o feminicídio pode chegar a 30 anos.
Pai de Lorenza espera que promotor seja condenado à pena máxima
O pai de Lorenza espera que o promotor pegue a pena máxima possível ao fim do julgamento. “A nossa expectativa é que o André permaneça na prisão e que ele seja condenado à pena máxima pela monstruosidade que ele cometeu contra a minha filha, mãe de cinco filhos. Nesses 16 meses que a Lorenza foi assassinada, André usou todos os subterfúgios para postergar esse julgamento, e vai continuar usando, mas nós temos certeza de que a justiça vai chegar. Este é o início do fim da impunidade de André Pinho. Não é por que ele é um promotor, aliás, de péssima reputação, por estar afastado há um ano e meio, que ele vai conseguir o que ele achou que iria conseguir, que era a impunidade no crime da minha filha, com a tentativa de cremar o corpo dela. Não! A Justiça vai pegar o André de Pinho”, almeja.
Na opinião dele, a condenação do promotor será um exemplo para acabar com a impunidade no país, principalmente a relacionada aos crimes de feminicídio. “O feminicídio é uma coisa que se alastra de uma maneira assustadora por nós. Nós vemos as manchetes dos jornais todos os dias e não damos bola porque achamos que isso só acontece com os outros, mas, não, isso acontece com a gente. E acontece com a gente porque a maioria dos homens saem impunes dessa monstruosidade, e nós, homens, ficamos calados por causa do machismo latente dentro da gente. Não podemos aceitar o feminicídio, enfatiza.
Desde a morte brutal da filha, Marco Aurélio se sente deprimido e triste. Ele diz que a condenação do promotor não vai amenizar a dor que a família sente, mas que a penalização é uma forma de fazer justiça. “O que amenizava o sofrimento da família era poder abraçar a minha filha, e isso eu não posso nunca mais. Nunca mais eu vou poder abraçar a minha filha. Então eu quero a justiça. Não é para amenizar não, é porque é justo ter justiça”, concluiu.
Como estão os filhos de Lorenza
Lorenza de Pinho deixou cinco filhos. Atualmente, os dois mais velhos, uma menina de 17 anos e um rapaz de 18 , moram sozinhos em um apartamento da região Centro-Sul da capital. Eles têm a intenção de cursar direito para serem promotores como o pai, conforme fontes da reportagem. Já o menino de 3 (meninos) e duas meninas, de 8 e 11, moram com a tutora, a ex-mulher do advogado Robson Lucas. O defensor era o tutor das crianças, porém pediu ao juiz que a responsabilidade fosse repassada para a ex-mulher por questões de saúde. Os três filhos pequenos estão matriculados em uma escola particular e “adaptados ao cotidiano da família”, conforme a fonte.
Médico que assinou atestado de óbito será ouvido
No julgamento que começa nesta segunda-feira, o médico Itamar Tadeu Gonçalves Cardoso, que assinou o atestado de óbito de Lorenza, será ouvido como testemunha do caso, conforme explicou a advogada dele, Virgínia Afonso.
“Ele simplesmente foi chamado como testemunha do processo do promotor André de Pinho, ele não tem relação nenhuma (com esse processo), e por isso será ouvido única e exclusivamente como testemunha. Ele não é réu nesse processo. Ele vai contribuir com as informações para que os julgadores possam efetivamente julgar de uma forma isenta. Ele não tem interesse nenhum, ele vai simplesmente se manifestar como testemunha, contando efetivamente o que ocorreu”, detalhou a defensora. A previsão é que o médico seja ouvido pela manhã.
O médico estava de plantão em um hospital da região Centro-Sul de Belo Horizonte, quando foi acionado para atender Lorenza na casa dela. Ele seguiu em uma ambulância do próprio hospital até a residência. No local, ele tentou reanimar a mulher por 40 minutos, mas não obteve sucesso. Depois disso, ele assinou o atestado de óbito de Lorenza.
O profissional responde por outro processo, que foi desmembrado do feminicídio. Isso porque a equipe técnica do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) constatou que Lorenza foi morta dopada e asfixiada e entendeu que o médico mentiu em seu parecer, já que declarou como causa primeira da morte a autointoxicação.
Recai sobre ele também a denúncia de falsidade ideológica, já que, segundo o MPMG, ele teria mentido sobre o estado de saúde da paciente. “Ele responde a um processo na Corte do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e está sendo julgado em primeira instância. Não tem nada a ver com o homicídio. Ele não tem nenhuma relação com o promotor André”, destaca a advogada.
Relembre a morte de Lorenza de Pinho
Lorenza de Pinho, de 41 anos, morreu entre a madrugada e o início da manhã de 2 de abril de 2021. O óbito foi constatado por um médico da emergência do Hospital Mater Dei no apartamento onde o casal vivia com seus cinco filhos, no bairro Buritis, na região Oeste de Belo Horizonte. Leia a retrospectiva com os episódios mais importantes da investigação:
2 de abril de 2021
Morre Lorenza Maria Silva de Pinho, de 41 anos. O marido dela, o promotor André Luis Garcia de Pinho, liga para a emergência de um hospital particular da região Centro-Sul da capital e solicita uma ambulância para a mulher.
O médico Itamar Tadeu Gonçalves Cardoso é direcionado ao apartamento da família Pinho, no bairro Buritis. Ele tenta ressuscitá-la. No atestado de óbito, o plantonista registra morte por autointoxicação.
3 de abril de 2021
O velório de Lorenza é marcado para acontecer entre 10h e 12h. Uma fonte, que pediu sigilo, disse que uma sala foi reservada no Funeral House para a cerimônia.
A hipótese de feminicídio é levantada pelo pai da vítima. O corpo não chega a ser velado e é transferido para o Instituto Médico-Legal (IML).
4 de abril de 2021
O promotor André é detido no apartamento da família dois dias após a morte da mulher. Ele é apontado como suspeito de assassiná-la.
5 de abril de 2021
André troca de advogado horas antes de ser ouvido em audiência.
Os filhos mais velhos de Lorenza e André, de 17 e 18 anos, são ouvidos pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Em função do cargo ocupado por André, a investigação segue nas mãos do órgão estadual e da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG).
A necropsia de Lorenza é concluída no IML; no entanto, o corpo não é liberado.
6 de abril de 2021
Integrantes da equipe de investigação composta por promotores de Justiça e delegados da Polícia Civil são revelados em publicação no Diário Oficial do MPMG.
A Justiça concede a guarda dos cinco filhos de Lorenza e André, que têm 3, 8, 11, 17 e 18 anos, para um amigo da família; trata-se do médico Bruno Sander, de 41 anos.
7 de abril de 2021
Pai de Lorenza, o aviador aposentado Marco Aurélio Silva revela à Justiça que a filha e o marido dela registraram testamento em 2018 apontado o médico Bruno Sander como guardião dos filhos.
8 de abril de 2021
Amigos de Lorenza reúnem-se para missa de sétimo dia na igreja Santa Rita de Cássia, no bairro São Pedro, na região Centro-Sul de BH.
9 de abril de 2021
Promotor recebe visita virtual do médico Bruno Sander.
10 de abril de 2021
Em entrevista inédita, os filhos mais velhos de Lorenza e André, de 17 e 18 anos, relatam que a mãe era depressiva e misturava remédios com bebida alcoólica nas crises; eles acreditam na inocência do pai.
11 de abril de 2021
Pai de Lorenza contesta versão de que filha teria hábito de ingerir bebidas alcoólicas; para ele, Lorenza foi vítima de feminicídio.
13 de abril de 2021
Corpo de Lorenza é liberado pela Justiça dez dias após conclusão da necropsia pelo IML.
14 de abril de 2021
Lorenza é sepultada no cemitério Boa Morte, em Barbacena, no Campo das Vertentes.
19 de abril de 2021
Médico que atestou o óbito de Lorenza em 2 de abril – Itamar Tadeu Gonçalves Cardoso, do Hospital Mater Dei – presta depoimento na sede do Ministério Público de Minas Gerais. Ele se recusou a falar com a imprensa.
20 de abril de 2021
Giovani Ferreira, pastor amigo da família Pinho, é ouvido pelo MPMG. Depoimento dura cerca de uma hora e meia. Ele narra que foi ao apartamento da família na manhã do dia da morte de Lorenza e declarou ter visto o corpo ser removido. “O corpo estava ao lado da cama coberto por um lençol. Não mostrava nenhum sinal de ferimento ou algo que chamasse a atenção”, disse na ocasião.
22 de abril de 2021
Médico Hércules de Pinho, primo de André Luis Garcia de Pinho, presta depoimento ao Ministério Público. Fontes ligadas à investigação disseram que ele conhecia o quadro clínico de Lorenza.
27 de abril de 2021
Promotor depõe na Procuradoria Geral de Justiça, em Belo Horizonte, por cerca de três horas e meia.
Advogado de defesa de André de Pinho, Robson Lucas da Silva, afirma ter tido acesso antecipado ao laudo de necropsia. Segundo ele, documento atestaria que mulher do promotor não foi assassinada.
29 de abril de 2021
Sai laudo de perícia particular contratada pela defesa do promotor. De acordo com documento, morte de Lorenza foi fruto de intoxicação – uma combinação de álcool e medicação antidepressiva.
12 de maio de 2021
A reportagem tem acesso, com exclusividade, ao inquérito da Polícia Civil que demonstra que o corpo de Lorenza chegou ao IML sem sangue. Apesar de o destino do sangue não ter sido revelado, fonte ligada ao MPMG informou à reportagem que o líquido poderia ter sido usado em um ritual macabro.
Em análises periciais do computador do promotor foram achadas pesquisas envolvendo rituais, além de curso relacionado à tanatopraxia (técnica de conservação do corpo, que envolve retirada de sangue).
Da Redação com OTempo