O incêndio que levou ao hospital 22 detentos da Penitenciária Nelson Hungria, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, na última quinta-feira (2 de março) reacendeu a discussão sobre as más condições do sistema carcerário de Minas Gerais. Dados obtidos por O TEMPO via Lei de Acesso à Informação (LAI) indicam que a chance de um condenado morrer enquanto cumpre pena em regime fechado é 233% maior do que daqueles que estão no sistema semi-aberto. Para especialistas, a superlotação e o descaso das autoridades com a saúde dos presos são a principal causa dessa diferença assustadora.
Em 2022, as unidades prisionais de Minas Gerais registraram 66 mortes, segundo os dados concedidos pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). Deste total, 86% (57 mortes) foram no regime fechado, 12% (8 mortes) no semi-aberto e uma única morte ocorreu em uma das APACs do Estado.
Quando se compara estes números com a população carcerária de cada um dos sistemas, também divulgados pela pasta via LAI, o que vemos é que, no sistema fechado, foi registrada no ano passado uma morte a cada 430 presos, enquanto, no semi-aberto, este número salta para uma a cada 1.433 presos.
Integrante da Comissão de Assuntos Penitenciários da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Minas Gerais (OAB-MG), a advogada Ana Carolina Silva fala sobre os problemas das penitenciárias. “Superlotação carcerária, insalubridade, falta de medicamentos, falta de profissionais capacitados, falta de produtos de higiene, péssima qualidade da alimentação, além das constantes ocorrências de torturas, maus-tratos e violências sexuais”, analisa.
O secretário-geral da mesma comissão, André Luiz da Silva Lima, admite que “o sistema carcerário passa por uma série de dificuldades e desafios”. Muitos dos problemas dos detentos, segundo ele explica, são pregressos à entrada na prisão e se agravam durante a permanência em reclusão.
“O cárcere traz uma série de adoecimentos. Temos pessoas portadoras de sofrimento mental enclausuradas”, prossegue. O especialista avalia que é necessária que a discussão seja ampliada para outras áreas, como a psiquiatria e a psicologia. “A privação de liberdade é um tema muito complexo”, considera.
‘Privado de liberdade, não de direitos’
A advogada Ana Carolina Silva reforça o detento está “privado de liberdade, não de direitos”. Ela lembra que a pena, pautada na “ressocialização”, tem a função de “prevenir” que o infrator volte a cometer crimes. “Será que estes indivíduos não merecem uma segunda chance?”, reflete.
“Nossa sociedade necessita de superar a intolerância, a discriminação, a exclusão social, a violência, a incapacidade e aprender a trilhar estratégias e caminhos para resolver nossos problemas sociais, e não realizar essa acautelamento em massa e achar que desta maneira tudo estará controlado e resolvido”, avalia.
Conforme a advogada, “o Estado passou a usar as penas e a prisão como principal forma de controle e manutenção da ordem, esquecendo dos direitos e garantias fundamentais”.
“O preso perde todos os seus direitos e começa a ser tratado como coisa, sobrevivendo nas mazelas do sistema prisional, onde a força bruta do Estado passa a intimidá-lo com pretexto de manter a ordem e a segurança social”, completa.
Condições dos presídios
Em fevereiro, a reportagem de O TEMPO publicou a denúncia de familiares das pessoas em privação de liberdade que afirmavam que as más condições das unidades prisionais mineiras estariam levando os presos a adoecer e, até mesmo, a morrerem. Menos de 15 dias antes, após um coletivo ser incendiado em Ibirité, na região metropolitana, foi entregue à polícia uma carta reclamando das condições dos presídios e ameaçando “atear fogo” em pelo menos 20 cidades do Estado.
À reportagem, a esposa de um detento que pediu para não ser identificada relatou condições precárias na Penitenciária Nelson Hungria. Entre os relatos, ela disse que são servidas refeições com comida azeda para os detentos. “Acabam não tendo dignidade. É uma condição muito difícil”, contou.
Segundo o secretário-geral da comissão de Assuntos Carcerários da OAB-MG, André Luiz da Silva Lima, a solução para a qualidade da alimentação servida na cadeia está no preparo. “A alimentação tem sido um grande desafio, um grande calcanhar de aquiles. É fazer com que a comida volte a ser produzida dentro das unidades”, destacou.
O que diz a Sejusp
A reportagem questionou a Sejusp sobre os dados de detentos que morreram no regime fechado. Com relação à qualidade da comida fornecida a detentos, a pasta informou que “a alimentação passa por fiscalização da superintendência de nutrição da secretaria”.
A secretaria também negou que comida azeda seja servida na Nelson Hungria. “Uma comissão na própria unidade prisional fiscaliza todas as refeições servidas”, disse. Além disso, afirmou que em caso de eventual detecção de “situações pontuais” e “descumprimento da qualidade prevista em contrato”, são instaurados procedimentos administrativos.
Veja a nota na íntegra:
A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) informa que não procedem as denúncias sobre possíveis problemas com a alimentação no Complexo Penitenciário Nelson Hungria. A alimentação servida aos detentos passa por fiscalização da superintendência de nutrição da secretaria, além de uma comissão da própria unidade prisional, que fiscaliza toda as refeições servidas.
A entrega da alimentação nas celas é realizada pelos próprios detentos, que são contratados pela empresa fornecedora das refeições. Vale destacar que na unidade, assim como nas demais administradas pelo Depen-MG, são servidas quatro refeições por dia aos presos, sendo café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar.
Em casos de eventual detecção de situações pontuais e descumprimento da garantia da qualidade prevista em contrato, imediatos procedimentos administrativos são realizados, que podem resultar em multas e até perda de contrato por parte da empresa executora. Esclarecemos ainda que, por força de contrato, caso a direção da unidade prisional identifique algo que torne a alimentação imprópria para consumo, a empresa fornecedora deverá realizar a pronta substituição, sem ônus para o Estado.
Sobre superlotação, ressaltamos que o Estado tem trabalhado para ampliar o número de vagas. Unidades prisionais estão sendo construídas, reformadas e, além disso, por meio da gestão prisional de vagas, movimentações são feitas diariamente para que as condições dentro das diferentes unidades prisionais possam estar equilibradas, permitindo, assim, melhores condições tanto para o custodiado, quanto para os profissionais que trabalham diretamente com a custódia e ressocialização de internos. A título de exemplo, nos próximos dias, ainda no mês de março, o anexo do Presídio de Divinópolis será inaugurado, com estrutura para receber mais de 300 presos.
Com O Tempo