Minas Gerais registra uma média superior a sete casos de violência em serviços de saúde por dia em 2023. Os dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) alertam para a necessidade de reforço das equipes, melhora do atendimento e investimento em segurança nas unidades. Superlotação e demora para atendimento são citadas por especialistas como desencadeadores dos episódios, à medida que afastam profissionais interessados em trabalhar na saúde pública.
Nos quatro primeiros meses do ano, entre janeiro e abril, Minas Gerais registrou 515 casos de ameaça, 253 de dano, 159 de lesão corporal e dois homicídios em serviços de saúde. Somadas, as ocorrências totalizam 929 em 120 dias — uma média superior a sete por dia. Houve um aumento expressivo no número de lesões corporais, que subiram 47,2% em relação ao mesmo período de 2022, quando foram 108 casos.
O diretor de Defesa Profissional do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sindmed), Artur Mendes, acredita que possa haver ainda uma subnotificação de casos. “Não é sempre que os profissionais denunciam. Existe a violência que chega a agressões e até homicídios, e existe a violência do dia a dia; xingamentos o tempo todo, que não são notificados às autoridades”, afirma.
No último dia 31, dois guardas civis municipais foram denunciados por agressão a uma mulher no centro de saúde Nossa Senhora de Fátima, no Aglomerado da Serra, região Centro-Sul de Belo Horizonte. Após a repercussão da abordagem, registrada em vídeo, um dos agentes foi afastado. O caso é investigado pela corregedoria da corporação, informou a prefeitura, que também lamentou a situação.
Os casos de violência em Unidades de Pronto Atendimento (UPAS) de Belo Horizonte fizeram com que a prefeitura determinasse a presença de guardas municipais nas unidades de saúde 24 horas por dia. “É necessário garantir segurança e condições de atendimento dignas para os pacientes e trabalhadores”, escreveu o prefeito Fuad Noman (PSD).
A superlotação das unidades de saúde e a demora para atendimento contribuem para o cenário de tensão, avalia o médico Artur Mendes. “As pessoas chegam adoecidas, ansiosas por atendimento. Com a insuficiência da gestão pública em oferecer bom atendimento, as pessoas acabam descontando a frustração no agente público que está em frente a ela”.
Violência
Longa espera para atendimento, falta de informação e impaciência por parte dos profissionais responsáveis pelo atendimento e dos pacientes. O cenário, narrado por pessoas que buscaram atendimento nas unidades de saúde da região metropolitana de Belo Horizonte, ainda é composto por um ingrediente: a violência. Usuários do sistema de saúde relataram ter vivenciado histórias de desacato e agressões nas inúmeras horas em que aguardavam passar por atendimento médico.
Acometido por uma forte gripe, o auxiliar de produção Anderson Luiz de Paula Júnior, de 34 anos, esteve na UPA JK, no bairro Eldorado, em Contagem. Ele chegou ao local por volta das 9h e quando a reportagem deixou a unidade de saúde, 13h50, ainda esperava ser avaliado por um médico. Ou seja, quase cinco horas de espera. Ele relatou já ter presenciado atos de violência no local.
“Um paciente estava aqui esperando já há muito tempo, umas quatro horas e meia, cinco horas, e ele foi lá pedir atendimento. O funcionário simplesmente ficou calado, e ele começou a quebrar as coisas e falou: ‘Vou começar a quebrar. Quem sabe assim eles me atendem como se eu fosse doido’. Ele começou a chutar cadeira, chutar a lixeira”, detalha. Esse caso teria ocorrido em outra situação em que ele esteve no local. Anderson não soube dizer a data deste ocorrido.
Para ele, a falta de estrutura das unidades de saúde e o elevado tempo de espera são estopins para casos como esse narrado por ele. “Vai gerando ira nas pessoas. Elas quebram as coisas. Xingam funcionários. Geralmente são maltratados pelos funcionários. Eles partem até para agressão. O funcionário que está ali dentro não sabe que o grau de dor que o paciente está sentindo”, afirma.
Sobre o caso narrado por Anderson, a prefeitura de Contagem, por meio de nota, disse que não houve “relato de violência na recepção da UPA JK” e que também não houve acionamento da Guarda Civil Municipal ou da Polícia Militar (PM).
Não muito longe dali, no Hospital Municipal de Contagem, uma paciente que pediu anonimato contou ter presenciado problemas muito parecidos aos registrados por Anderson. Ela estava no local após não ter conseguido atendimento três dias antes. “Na hora em que eu fui ser atendida, ela falou que não ia atender porque estava tarde. Infelizmente, o que eu tenho a fazer? Eu vou brigar? Eu tenho que voltar, porque a gente depende’, desabafa a mulher que aguardava por quase 2h ser atendida na segunda tentativa.
Assim como o auxiliar de produção Anderson Luiz, a mulher também já presenciou cenas de violência em unidades de saúde, mas na UPA Barreiro. Segundo ela, uma mãe chegou com a filha quase desmaiada nos braços e se irritou quando a criança foi classificada como paciente de risco leve. “Ela literalmente chutou a porta e disse: ‘Se a minha filha morrer aqui, não vai sair ninguém vivo daqui de dentro’. Aí o médico atendeu”, relata.
Em nota, a prefietura de Contagem disse, por meio do Serviço Social Autônomo, que “as consultas realizadas na unidade são previamente agendadas”.
A faxineira Mônica Cruz Messias, de 45 anos, também passou por episódios de violência na UPA Barreiro. “A polícia vem aqui frequentemente, mas não resolve nada. Já vi rapaz chutando a porta, tentando ‘voar’ [bater] nos funcionários. Infelizmente, está uma situação precária aqui. Há idosos e crianças esperando. Para uma UPA deste tamanho deveria ter mais funcionários, uma equipe completa”, opina.
A manicure Eduarda Oliveira, de 21 anos, quando conversou com a reportagem, havia levado a filha Jasmim, de 2 anos, para a UPA Barreiro. A menina estava com febre e tosse. “Perguntei se ia demorar [o atendimento], e me falaram que eu podia ir em casa e tomar café”, conta.
Eduarda admite que ela mesmo já se excedeu ao reclamar da demora. “Uma vez eu chutei a porta e falei: “Vocês estão com pouca vergonha. Cheio de gente [para ser atendido]”. Você chega mal e tem que esperar. Se fosse uma hora, tudo bem. Mas 7 horas? Ficamos na friagem, porque aqui não é coberto e lá dentro está lotado”, completa.
Diretora do Sindicato Único dos Trabalhadores da Saúde de Minas Gerais (Sind-Saúde/MG), Neuza Freitas concorda que o “número insuficiente de trabalhadores” é fator que desencadeia casos de violência em serviços de saúde. “O mais grave é que toda violência é gerada pela falta de estrutura nas unidades hospitalares e pelas condições de trabalho do servidor.”
Conforme Neuza, com equipes incompletas, os trabalhadores sobrecarregam a jornada de trabalho. “Muitas vezes faltam insumos, equipamentos. Quando isso acontece, reflete na linha de ponta, que é o trabalhador. Enquanto isso, os gestores ficam no conforto do ar-condicionado”, afirma.
Atendimento humanizado x esgotamento emocional
Episódios de violência poderiam ser reduzidos com uma recepção mais transparente e humanizada dos trabalhadores, avalia o coordenador do curso de psicologia da Estácio, Thales Coutinho. Segundo ele, “a raiva é um sentimento desencadeado pela percepção de violação de direito, sem uma explicação lógica”.
Ele opina que os trabalhadores, em alguns casos, assumem uma “linguagem técnica” ao tratar o paciente, que pode não ter conhecimento para entender. “É explicar para a pessoa, de maneira que ela entenda, por que é necessário esperar”, analisa.
“A impaciência é potencializada pela ausência de certeza. Se você não tem notícia de nada, vê as pessoas entrando [para ser atendidas] e você não, sente-se negligenciado, é natural ficar mais inclinado ao conflito. Parte considerável dos episódios de violência poderia ser evitado se as pessoas recebessem um tratamento digno”, prossegue.
Coutinho pontua que um “atendimento mais humanizado” não é uma solução para “erradicar o problema”, mas para minimizá-lo. “Violência faz parte do comportamento humano. E há pessoas que tendem a ser violentas. Para estes casos, é necessário, de fato, acionar forças de segurança”, analisa.
Entretanto, o “esgotamento emocional” dos trabalhadores compromete esse atendimento humanizado, admite o especialista. “Os profissionais da saúde, especialmente os que lidam com atenção básica, são os que mais sofrem da síndrome de burnout [distúrbio psicológico relacionado ao trabalho e caracterizado por exaustão emocional]”.
“São trabalhadores que lidam com o risco constante da morte. O burnout por si só esgota a capacidade da pessoa de ser empática. Uma parte dessa desumanização é consequência de um sistema que adoece os profissionais, com falta de carga horária e condições de trabalho dignas”, avalia.
Falta de profissionais
Para o diretor do Sindmed, Artur Mendes, há uma relação entre os casos de violência nos centros de saúde e a dificuldade do serviço de saúde de contratar profissionais, que enxergam no mercado privado mais segurança. A pediatria é uma das especialidades que tem sofrido recentemente com a falta de médicos na rede pública.
“Essas condições afastam os profissionais. Hoje, em Belo Horizonte, temos o absurdo de não contar com porteiro e guarda em postos de saúde. Conviver com violência é rotina do profissional de saúde, infelizmente com gravidade em alguns casos”, analisa.
Em Belo Horizonte, segundo a prefeitura, há 500 vagas abertas para médicos de diferentes especialidades. O município afirma ter convocado, desde abril de 2022, 1.601 profissionais da saúde, sendo 619 médicos, aprovados no concurso público realizado em julho de 2021. O município também reforça que mantém “aberto um banco de currículos para contratação imediata de médicos”.
A Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) informou que realiza “processos seletivos simplificados para concursos temporários, credenciamentos de médicos e que, recentemente, publicou o edital de concurso público, com 1.800 vagas”.
Investimento em segurança
Além de investir em equipes completas, também é necessário reforçar a segurança. “Há pessoas que são agressivas e precisamos que os profissionais tenham a quem recorrer. Precisamos de porteiros e seguranças para impedir esses casos, embora a maioria das ocorrências seja uma violência de certa forma até natural devido à ansiedade na busca por atendimento”, analisa o médico Artur Mendes.
Conforme a Prefeitura de BH, além da medida que coloca guardas de saúde 24 horas por dias nas UPAs da cidade, o prefeito Fuad Noman criou um grupo de trabalho que atuará “na elaboração de diagnósticos da violência nas unidades de saúde”. Os resultados “servirão de base para eventuais adequações na estratégia de segurança”, afirmou.
O município também afirma que as unidades de saúde “possuem câmeras, alarmes e botão do pânico instalados”. O monitoramento é feito por uma empresa terceirizada e pelo Centro Integrado de Operações de Belo Horizonte (COP-BH).
Segundo a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG), a pasta destinou mais de R$ 1 bilhão para melhoria de estrutura física e de equipamentos, entre outros aspectos, por meio da “Política Hospitalar Valora Minas”. Com relação a execução dos serviços voltados aos atendimentos e à segurança nas unidades, a pasta diz ser uma responsabilidade dos municípios.
A Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), responsável pela gestão de 19 unidades hospitalares no Estado, disse que as unidades possuem “contrato de segurança patrimonial armada”.
“As unidades da Fhemig investem em sistemas de controle de acesso, com a devida identificação do público externo. Também são realizadas, periodicamente, capacitações para instruir os servidores de como proceder nessas situações. No caso de ocorrências que envolvam agressões dentro do ambiente hospitalar, a Polícia Militar é acionada imediatamente”, afirmou.
Com O Tempo