Quase um ano após o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) ter proibido os disparos em massa para fins políticos, a indústria de mensagens eleitorais por WhatsApp e de extração de dados pessoais de eleitores por Instagram e Facebook continua operando.
Investigação da Folha e denúncias de candidatos a vereador mostram que, com o objetivo de influenciar os eleitores pelas redes sociais, ao menos cinco empresas estão oferecendo esses serviços para postulantes a Câmaras Municipais e prefeituras na eleição de 2020.
As empresas e os candidatos que fazem disparos em massa ou usam cadastros de contatos de eleitores sem autorização podem estar sujeitos a multa e, dependendo da magnitude do uso dessas ferramentas ilegais, a uma ação de investigação judicial eleitoral, que, em última instância, pode levar à cassação da chapa.
A BomBrasil.net, nome fantasia da Brasil Opções de Mercado, oferece em seu site e no prospecto “Material de campanha eleições 2020” a venda de banco de dados de celulares com nome, endereço, bairro, renda, data de nascimento, com filtro de WhatsApp.
Um banco com 20 mil números de celular sai por R$ 1.800 –acima disso, “solicitar orçamento”.
“Cadastramos na agenda de seu celular os contatos de WhatsApp de eleitores de sua cidade” –o envio de WhatsApp sai por R$ 0,15, e o de SMS, R$ 0,09.
A BomBrasil.net também oferece software que permite extrair dados de usuários do Instagram e do Facebook.
Por meio do que se chama “raspagem”, obtém-se nome e número de celular de usuários do Instagram que tenham usado determinada hashtag em suas postagens.
Por exemplo, seleciona um banco de dados de pessoas que postaram no Instagram usando #direitoaoaborto ou #shoppingiguatemi ou de perfis que curtiram uma foto específica.
Com essas informações, forma-se um banco de dados de usuários para enviar mensagens em massa por WhatsApp, por exemplo.
Também oferece envio automático de mensagens diretas pelo Instagram e comentários automatizados em postagens de determinados perfis. Segundo a empresa, os softwares têm vários recursos para driblar o filtro de spam ou o detector de automação das plataformas.
Até o ano passado, os disparos em massa por WhatsApp para fins eleitorais não eram proibidos, a não ser que usassem cadastro para envios que não tivesse sido cedido voluntariamente pelos usuários, fosse utilizado para disseminar ataques ou notícias falsas contra candidatos ou se não fosse declarado como despesa de campanha ao TSE.
Em novembro de 2019, uma resolução do TSE proibiu qualquer envio em massa de conteúdo eleitoral.
Além disso, determinou que mensagens políticas só podem ser enviadas “para endereços cadastrados gratuitamente pelo candidato, pelo partido político ou pela coligação, observadas as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados quanto ao consentimento do titular”. A lei eleitoral já vedava compra de cadastros.
O candidato a vereador em São Paulo Bruno Maia, que concorre pelo PDT com o nome de Todd Tomorrow, recebeu emails e prospecto da BomBrasil oferecendo esses serviços ilegais. Com o objetivo de fazer uma denúncia, ele ligou para as várias empresas que enviaram a ele oferta de serviços ilegais e gravou as ligações.
Após informar que era candidato a vereador em São Paulo, Tomorrow ouviu da pessoa que atendeu na BomBrasil: “Então, eu tenho um banco de dados de quase a cidade inteira aí. De WhatsApp. Com nome, endereço, telefone, data de nascimento, renda, até título de eleitor… E a gente faz um filtro. Aí você tem que olhar pro bairro, né. Os bairros que você quer atingir. Dependendo das quantidades tem os valores, chega até a R$ 0,05 [por disparo de WhatsApp]”.
O preço vale para o caso de o próprio candidato usar o software e fazer os disparos. Caso a empresa faça, o preço sobe para R$ 0,12, informou ao candidato esse contato da BomBrasil.
Por WhatsApp, a pessoa que se identificou como Ronaldo Ornelas, proprietário da BomBrasil, afirmou à Folha que a empresa é apenas afiliada da Housoft, a fabricante dos softwares que permitem extração de dados e envio em massa.
Por mensagem, a Housoft afirmou que a maioria de seus clientes “são pequenas e médias empresas que precisam divulgar seus serviços, mas não querem pagar os valores altos cobrados por anúncios patrocinados nas redes sociais”.
“Como empresa, nós oferecemos serviços partindo do pressuposto de que o cliente tenha boa fé. Não temos controle sobre o intuito de cada usuário, infelizmente.”
“Se alguém está usando nosso app para fazer algo que não é permitido, não chega ao nosso conhecimento pois não temos acesso a nenhum dado de clientes. Nosso app não executa em nossos servidores, executa apenas localmente no computador do cliente.”
Após informados pela reportagem da Folha, Facebook e WhatsApp enviaram notificação extrajudicial para a Housoft para que interrompa as atividades que violam os termos dos aplicativos.
Coletar dados das pessoas em redes sociais e usá-los sem consentimento dos usuários viola também a Lei Geral de Proteção de Dados, que entrou em vigor em setembro. Mas as sanções previstas pela lei, como multas que podem chegar a R$ 50 milhões, só serão aplicadas em 2021, respeitando o prazo de um ano para adaptação ao novo regramento.
“Eu acho que o TSE amadureceu muito em relação à eleição de 2018, e as grandes plataformas também vêm adotando medidas para coibir irregularidades”, diz Diogo Rais, professor de direito eleitoral na Universidade Mackenzie e cofundador do Instituto Liberdade Digital.
“Mas falta olhar para os intermediários, essas agências que oferecem esses serviços.”
“Tudo isso é uma tentativa de manipular o processo eleitoral, é uma violação da liberdade do eleitor de decidir seu voto sem ser alvo de publicidade direcionada, que, muitas vezes, ele nem sabe que está ocorrendo”, afirma Francisco Brito Cruz, diretor do Internet Lab.
“Mas elas ainda continuam ocorrendo, então há um problema de aplicação da lei.”
A empresa Automatize Soluções Empresariais aborda candidatos pelo WhatsApp. “Boa tarde, me chamo Welbert, peguei seu número no Facebook, onde informa que é candidato a vereador, trabalho com impulsionamento de campanha, mais visibilidade e alcance de quase 100% dos moradores de sua cidade” —essa foi a mensagem recebida por Todd Tomorrow.
Em conversa com o candidato a vereador, a pessoa identificada como Welbert Gonçalves explicou como funciona a extração de contatos do Instagram.
“Tem um restaurante mais top perto da sua casa. Vai no Instagram, pega a hashtag. Se o restaurante tem mil seguidores, você consegue pegar aqueles telefones. Por exemplo, BH tem o shopping da Savassi, se eu coloco ali, Savassi, todo mundo que curtiu a Savassi. Se tem um grupo Savassi com 70 mil pessoas no Instagram, eu vou extrair aquelas 70 mil pessoas.”
“Pega uma localização onde você sabe que as vacas vão te dar leite, não adianta você ir lá do outro lado da fazenda para achar aquela vaca magra. Então pega as vacas gordas.”
Segundo essa pessoa identificada como Welbert Gonçalves, o software consegue evitar o banimento dos chips pelo WhatsApp ao fazer os envios massivos.
“Ele faz revezamento de mensagem, ele tem uma API na qual você pode colocar 10, 15 mensagens diferentes, e ele vai fazendo rodízio, e simula uma digitação humana, como se tivesse uma pessoa teclando letrinha por letrinha. Então, isso faz com que não seja configurado como robô, para poder fugir mesmo, por causa das eleições.”
Procurado pela reportagem, Welbert afirmou: “Nós só vendemos o software, não vendemos o serviço, e está tudo dentro das regras”.
Ele disse que a empresa já vendeu o serviço para cerca de 700 candidatos neste ano. Segundo ele, o software de extração de contatos e disparos sai por R$ 699, e o valor pode ser dividido em 12 vezes.
Welbert disse que o software vendido por ele é da empresa Autland. Eleandro Tersi, dono da Autland, negou que venda seus serviços para políticos e disse que não daria entrevista.
“O WhatsApp está totalmente comprometido com o combate à automação e aos disparos em massa”, afirma Dario Durigan, diretor de Políticas Públicas para o WhatsApp no Facebook Brasil.
Segundo ele, a plataforma está enviando notificações extrajudiciais e, em alguns casos, processando empresas que violam os termos de serviço do WhatsApp.
Há uma equipe dedicada a derrubar anúncios desses serviços ilegais no Google, Yahoo! e outros buscadores —entre junho e setembro, segundo ele, foram removidos 20 mil anúncios—, além de Facebook e Instagram.
“Além disso, o sistema de detecção de contas automatizadas está cada vez melhor, então estamos banindo milhares de contas”, diz. “Mas é preciso conscientizar os candidatos. Estamos conclamando os partidos para que não contratem disparos em massa.”
Em contato telefônico com o candidato Tomorrow, Rubens Manfredini, da agência Minds, afirmou que poderia fornecer banco de dados com milhões de nomes e celulares segmentados por cidade, bairro e estado.
“Se eu precisar de região central, público LGBT, vocês conseguem?”, indaga o candidato, no áudio obtido pela Folha.
“Claro. É a segmentação central, mais as subcategorias. Tem o médico do norte, médico Brasil inteiro, ginecologista, dentista, pediatra, evangélicos, tem de tudo. A gente sempre fala, para mandar em massa, definir alguns critérios é legal, mas pegar o público muito geral também, porque sempre alguém conhece alguém, e vai indicar.”
Em nota, a Minds afirmou que nunca prestou, participou ou se envolveu em nenhuma forma de campanha política.
“No segundo semestre de 2020, criamos o Vereador.Voto, uma plataforma de criação de sites, onde candidatos a vereadores podem criar um site, agregar links de suas redes sociais, perfis de crowdfunding, notícias, propostas e biografia. Essa plataforma não permite nenhum tipo de marketing ou envio automatizado.”
Mike Clark, diretor de gerenciamento de produtos do Facebook, informou que a plataforma tem equipes dedicadas a identificar a raspagem de dados na plataforma e, em ocasiões em que confirmou a extração de dados não autorizada, adotou medidas.
“Proibimos a raspagem de dados ou qualquer tentativa de coletar dados das pessoas sem a sua permissão, e estamos investigando as alegações”, disse.
Os eleitores estão sendo bombardeados por essas mensagens. Em dois dias, o empresário cearense Anderson Sobrinho recebeu quatro mensagens políticas não consentidas —duas de candidatos a vereador e duas de candidatos a prefeito, de PDT, PTB e PT, segundo ele.
“Eu não tenho ideia de como essas pessoas conseguem nosso contato”, diz Sobrinho.
As mensagens não solicitadas levaram o candidato Todd Tomorrow a denunciar a prática. “Eu estava recebendo dezenas de mensagens oferecendo esses serviços, por email, WhatsApp, Facebook, o que já é uma violação à minha privacidade e aos meus dados, então resolvi denunciar porque esse mau uso da tecnologia é uma ameaça à democracia.”
Andrea Werner, candidata a vereadora pelo PSOL em São Paulo, recebeu prospecto da empresa Solução e Tecnologia oferecendo WhatsApp Marketing que consegue “atingir até 20 mil aparelhos por hora” e um mobile marketing. “Através de um roteador especial, conseguimos acessar qualquer aparelho celular num raio de alcance de 300 metros a 2.000 metros, que alcança 2.520 celulares por hora, tanto via bluetooth quanto wi-fi”.
“Eles são muito cara de pau, ainda tentou me convencer de que não era ilegal”, diz Werner. A Folha tentou entrar em contato com a empresa pelo celular usado no contato com a candidata e o telefone do site, mas estavam desligados.
O TSE criou um canal de denúncias com o WhatsApp e fechou parceria com os principais checadores para que possam denunciar notícias falsas que estejam viralizando e suspeitas de disparos em massa.
“Queremos deixar cada vez mais claro que a venda desses disparos em massa é ilegal, assim como a venda de cadastro ou uso de dados ou de software que tenha essa finalidade”, diz a secretária-geral do TSE, Aline Osório, que é a coordenadora do programa de enfrentamento à desinformação no tribunal.
Para Pablo Ortellado, professor de gestão de políticas públicas na Universidade de São Paulo, a existência de muitas empresas fornecendo esses serviços demonstra que a capacidade do Estado de impor essas regras é limitada.
“E é preciso também que os candidatos saibam que, além de irregulares, esses disparos são ineficazes e caros.”
Com Folha de São Paulo