Na segunda quinzena de março, os casos de Covid-19 (a doença provocada pelo novo coronavírus, Sars-Cov-2) no planeta ultrapassaram a fronteira dos 150 mil casos e 6 mil mortes, mas pouquíssimos são crianças. Na China, onde foram feitos os estudos mais robustos sobre a epidemia até agora, 2,4% dos casos confirmados ocorreram nos mais novos, e 0,2% deles ficaram em estado crítico, como mostrou a Organização Mundial de Saúde em relatório de fevereiro.
Fora do país asiático os casos nos pequenos também são escassos e só agora, três meses depois do início da epidemia, houve registros de morte abaixo dos 10 anos no mundo, como registrou a Organização Mundial de Saúde no dia 16 de março. Há apenas um menino de três anos infectado entre os mais de 3,5 mil casos nos Estados Unidos, e no Brasil uma adolescente foi testada com resultado positivo, mas sem sintomas, assim como um menino com pouco mais de um ano, com sintomas leves.
O fenômeno é um alívio para pais e pediatras, mas permanece um mistério. Afinal, as crianças estão naturalmente protegidas do coronavírus? Parece que sim, e há várias teorias a respeito. A primeira diz que as crianças até se infectam, mas na maioria das vezes não manifestam sintomas. Um novo estudo testou essa possibilidade em 391 adultos chineses diagnosticados com a Covid-19 e 1.286 pessoas de todas as idades que tiveram contato com eles.
No final, os pesquisadores descobriram que menores de dez anos eram tão suscetíveis a contrair o vírus quanto os mais velhos, mas um risco bem menor de sofrerem sintomas severos como inflamação nos pulmões ou dificuldade respiratória.
O trabalho foi feito em parceria entre a Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health in Baltimore, dos Estados Unidos, e o centro de Prevenção e Controle de Doenças de Shenzhen, na China.
Geralmente, por ainda estarem com o sistema imune em desenvolvimento, as crianças são o grupo de risco para versões graves de gripe, transmitida pelo vírus influenza, pneumonia e outras doenças respiratórias. No caso do corona, suspeita-se que a imaturidade seja de certo modo positiva, levando a uma reação mais equilibrada do corpo frente ao vírus.
“Às vezes, o que faz um vírus ser mais agressivo é uma resposta imune exagerada ou desregulada, que gera o processo inflamatório por trás dos sintomas da doença”, explica Renato Kfouri, infectologista presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
As crianças, por ainda estarem com as defesas imaturas, não conseguiriam gerar tamanha inflamação contra o corona. É o estado inflamatório que causa febre, mal-estar e a inflamação nos pulmões que leva aos quadros mais perigosos da Covid-19. “Com menos inflamação, haveriam menos complicações”, propõe Lígia Camera Pierrotti, coordenadora médica da Infectologia do Grupo DASA, que reúne dezenas de laboratórios brasileiros e da América Latina.
Esta inflamação exagerada, somada à presença de doenças crônicas e à queda na resposta imune inata relacionada ao envelhecimento (a que ocorre antes que sejam produzidos anticorpos específicos para aquele vírus), ajuda a explicar porque certas doenças são mais graves nos adultos do que nas crianças, como a catapora e a mononucleose.
“Mas ainda não sabemos se isso é verdade também para o Sars-Cov 2. Temos só dois meses de epidemia, é tudo muito novo”, ressalta Kfouri. As epidemias anteriores de outros coronavírus, como a da Sars em 2003, e a Mers em 2012, também acometeram poucas crianças.
Mais hipóteses
Outra teoria para explicar a baixa incidência nos pequenos é que, como as crianças são expostas frequentemente a outros tipos de coronavírus (geralmente causadores de resfriados comuns), seus anticorpos ofereceriam uma espécie de proteção “de tabela” contra a nova variante.
“Podemos pensar, também, que a criança está em contato com muitos agentes patógenos diferentes, das vacinas e no meio ambiente. Portanto, seu sistema imune trabalha constantemente, o que poderia oferecer uma resistência melhor ao vírus”, propõe Natasha Slhessarenko, diretora médica de análises clínicas do Alta Excelência Diagnóstica.
Por último, há ainda a possibilidade delas apenas terem sido menos expostas ao vírus, que se espalhou primeiro entre os adultos. “Boa parte dos casos até agora está ligado a pessoas que viajaram em família ou a trabalho. Mas só com a circulação em massa na população é que teremos certeza de que a prevalência é menor nas crianças”, destaca Kfouri.
Ou seja, todas essas teorias serão postas a prova caso aconteça a transmissão comunitária em mais países, isto é, quando não é possível determinar a origem do vírus. Por enquanto, tudo se baseia na experiência com a população chinesa.
Não ficam doentes, mas espalham
Esse é um ponto importante. Crianças são conhecidas como as principais transmissoras de vírus como o influenza, da gripe. “O sistema imune é imaturo não só para provocar uma resposta inflamatória, mas para conter o vírus, então elas costumam excretar unidades virais por mais tempo”, comenta Ligia. Por exemplo, um adulto secreta o vírus da gripe por sete dias em média, uma criança por 14, e em maior quantidade.
Fora isso, elas se infectam mais, por conviverem juntas na escolinha, compartilharem objetos, levarem brinquedos à boca e por aí vai. “Elas são parte importante da cadeia de transmissão de doenças virais, uma vez que a maior parte das infectadas não apresenta sintomas, mas pode passar o vírus para outras faixas etárias”, comenta Kfouri.
Não dá para saber se o potencial infectante das crianças se repetirá com o novo coronavírus, mas, de qualquer maneira, as escolas estão sendo fechadas no Brasil e em vários outros países para diminuir a velocidade de propagação da Covid-19. Tal medida não é motivo para pânico, mas sim uma prevenção almejando a proteção do grupo que aparenta estar mais em risco — até agora, idosos, cardiopatas, diabéticos e portadores de doenças que prejudicam o sistema imunológico.
Como se manifesta em crianças?
Pesquisadores chineses relatam que os sintomas mais comuns nas crianças são tosse, congestão nasal, diarreia e dor de cabeça. Menos da metade tem febre, a maioria não tem sintoma nenhum e, quando tem, se recuperam em uma ou duas semanas. Mas o fato do filho manifestar esses sintomas não deve ser motivo para pânico.
“Mesmo se a criança tiver contato com um caso confirmado, só deve procurar o pediatra ou serviços de emergência em casos de febre por mais de 48 horas, um episódio de febre alta, superior a 39 graus, falta de ar e outros sinais mais graves”, orienta Kfouri. O ideal se os sintomas leves ocorrerem (o cenário mais provável nos pequenos) é se recolher em casa, manter a hidratação em dia, evitar o contato com pessoas do grupo de risco e, se precisar sair, colocar máscaras na criança que está doente.
Com Abril/Crescer