PARTIDO MUITO ALTO – BEZERRA DA SILVA (1980)
“SAMBA: Dança cantada de origem afra (sic): PARTIDO ALTO: Gênero muito próximo do batuque e amplamente cultivado nas rodas de samba do Rio. INGREDIENTES: muito ritmo, cavaco, violão, ‘muita bossa’, alegria, ‘recados’ e autenticidade. RESULTADO: Bezerra da Silva (provando e comprovando sua versatilidade) + AUTENTICIDADE.”
Assim, a liner note impressa na contracapa deste álbum vendia o que se comprava. E essa é uma receita bastante exata do material que o pernambucano José Bezerra da Silva e os músicos extraordinários presentes aqui entregam, um blueprint do que é chamado de “partido alto”: um ritmo constante, geralmente mais rápido, mantido por poucos instrumentos percussivos; linhas sinuosas de 7 cordas sobre harmonias simples de cavaco e 6 cordas, criando a “cama” para o cantor dar seus “recados”, seguidos de refrões entoados por coros femininos ou mistos (os versos improvisados na linguagem coloquial típica da região, onde a métrica, no máximo, é sugerida e, no mínimo, subvertida ou ignorada, narrando os dramas e histórias de indivíduos comuns, às vezes com contundência explícita).
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Neste álbum, não há a atualmente tão comum glamourização da pobreza e dos locais nos quais ela é abundante: há o fato narrado sem nenhum auxílio cosmético. O elemento lírico aqui tem a sutileza da primeira página do Notícias Populares, antecipando em 10 anos o que rappers fariam em um momento bem mais politicamente seguro, como em Inferno Colorido e O Vacilão.
“Em cada canto da cidade tem uma favela,
Que não tem beleza, nem riqueza também
Tem é um bocado de povo esquecido
Representando o inferno colorido
É o desengano dos olhos é cegar, e se não cega
Tem que ver para poder falar.”“Ele pintou no pedaço pagando sugesta para toda gente
E que é ferro a brasa no buraco quente
E que já mandou mais de dez pro caju
Aconteceu que os meninos não acreditaram e soltaram os bichos
Jogaram o malandro no latão do lixo
Enfiaram o cacete, deixaram ele nu!
Soltaram os bichos no cara porque não soube chegar
Lá na minha bocada a rapaziada bota pra quebrar.”
Onde não há ilusória segurança estatal, o indivíduo acaba se vendo na obrigação de fazer a sua própria, como sugere Coreto:
“O meu coreto você não vai bagunçar
Não vai, você vai ver aí
Você não é mais do que eu
Nem eu mais do que ninguém
O vento que venta lá, venta cá também
Amigo, eu estou falando sério
Valente ganha cadeia, hospital e cemitério.”
Ou, na incapacidade de fazer sua própria segurança, endossa a ação implacável do crime organizado (que em 1980, no RJ, já se mostrava realidade presente e atuante na constituição de novos “feudos urbanos”):
“Lá no pico da colina não existe covardia
Malandro respeita trabalhador e dá toda garantia
Eu já vi com esses olhos que a terra há de comer
Malandro de fora cobrando pedágio
Levar tanto tiro até esmorecer.”“A colina só é maldita pra quem é maldito também
Mas se o malandro souber chegar, é tratado muito bem
Agora deram uma blitz na colina
Deram coronhada, tiro e pescoção
Mas também levaram eco de escopeta
De metralhadora, fuzil e canhão.”
E, claro, há também o sempre presente socioleto do hermético microverso de Bezerra e seus parceiros (normalmente ocultos por pseudônimos, afinal a época era outra e o discurso nem sempre bem-visto): expressões, frases e metáforas só escutadas aqui, como “É meu irmão, é que nóis sabemos chegar em qualquer pico” ou “Eu só bato cabeça pra vovó”.
Após este disco, Bezerra ainda teria alguns álbuns bastante emblemáticos nos anos 80 e 90 (Alô Malandragem… Maloca o Flagrante, de 1986, e Eu Não Sou Santo, de 1990). Ironia das ironias, a partir da abertura política e durante a década de 90, ele se tornaria uma espécie de “malandro modelo” para programas de auditório, o que, para um sujeito que presenciava o que cantava, parecia ser uma posição desconfortável: falar a uma curiosa classe média que não o compreendia nem a seu idioleto, o vendo como uma curiosidade sociológica quase circense. Posição semelhante à de uma Dercy Gonçalves, com seus impropérios e palavrões já inócuos, dirigidos a uma plateia risonha e “boca aberta”, ou a um atual João Gordo fazendo campanha para político enquanto cozinha leguminosas. É o preço de ser “aceito”…
“O Sistema é foda”, já diria um personagem da cultura pop brasileira que mirou num alvo e (felizmente) acertou em outro…
Mas há Partido Muito Alto, um disco “puro”, musicalmente falando, e não dependente da exclusiva necessidade de venda ou do então inescapável jabá televisivo ou radiofônico. Por isso mesmo, não é para qualquer um, mas para quem é, é um clássico do submundo sociocultural brasileiro.
Arranjos e regência: Zé Menezes
Participação especial em 2 músicas: Genaro (vocais)
Violão de 7 cordas: Dino 7 Cordas (magistral!), e Voltaire
Violão de 6 cordas: Neco e Jorge Menezes
Cavaco: Menezes, Carlinhos e Neco
Bateria: Papão
Ritmos: Nosso Samba, Marçal, Arno, Geraldo Gongô, Jorge Garcia, Wilsom Carnegal, Ovídio, Zezinho Trambique, Bezerra da Silva
Coro: Nosso Samba e As Gatas