Você conhece o “Ethio-jazz”? Provavelmente não. Não se acanhe: até 2009, eu também não conhecia. Fui conhecer após assistir a Broken Flowers, filme de Jim Jarmusch (no Brasil, Flores Partidas), que apresentava sete músicas do criador deste subgênero, uma mistura de ritmos africanos, latinos e jazz, o músico etíope Mulatu Astatke. Não vou me estender sobre a biografia de Mulatu, pois isso pode ser facilmente encontrado em qualquer site da internet. A título de contextualização, basta dizer que Mulatu foi aluno do Trinity College em Londres e da Berklee nos Estados Unidos, onde, tocando piano e vibrafone, lançou seus primeiros álbuns em 1966 (Afro-Latin Soul, Volumes 1 & 2). Ao final dos anos 60, retornou à Etiópia, desenvolvendo uma mistura peculiar de escalas, instrumentos e ritmos típicos da cultura musical etíope com jazz e funk. Ao que me consta, Mulatu lançou apenas quatro álbuns e, posteriormente, retornou ao semi-anonimato, até ser redescoberto através da busca ávida de colecionadores de vinis por sua obra nos anos 90 (principalmente DJs) e, posteriormente, pelo citado filme de Jarmusch em 2005.

Já os Heliocentrics são um combo londrino com núcleo formado pelo baterista Malcolm Catto, o baixista Jake Ferguson, o guitarrista Adrian Owusu e o multi-instrumentista Jack Yglesias (que, nesse caso, se centra em percussão, flauta e piano). Com uma mistura multifacetada de funk, jazz fusion, rock, ritmos eletrônicos e, principalmente, do “jazz intergalático” de Sun Ra, o grupo lançou seu álbum de estreia, Out There, em 2007. No ano seguinte, após uma gig histórica com Mulatu (naquele momento com 66 anos), surge a proposta para gravação de um álbum em conjunto.

Gravado entre os dias 8 e 14 de setembro de 2008, Inspiration Information 3 foi o terceiro álbum de colaborações da gravadora Strut. Nele, estão presentes tanto composições de Mulatu quanto dos Heliocentrics (a maioria arranjada por algum integrante do grupo):
A faixa “Masenqo” abre o álbum com a voz de Yezina Negash dobrando com o masenqo (uma espécie de instrumento etíope de uma só corda), uma melodia tema que é seguida por baixo e guitarra distorcida, que nos remetem ao Black Sabbath tocando em uma feira de Addis Abeba. Já “Cha-Cha” traz no baixo, metais e percussão a influência latina de Astatke (aqui no vibrafone). “Mulatu”, faixa de autoria de Astatke lançada em 1972, reaparece com uma base rítmica que remete a James Brown fase Payback. “Anglo Ethio Suit”, com suas cordas de influência arabesca, nos transporta para um ponto ignorado do Oriente Médio, enquanto o baixo acústico, mantendo o ritmo em uma nota só à la Paul Chambers, grita “COLTRANE!”. É uma das faixas mais climáticas de Inspiration Information 3. Com um total de 14 faixas, “Modal” é um bom termo para definir as paisagens sonoras ilustradas neste álbum: são impressões de sonoridades ora familiares, ora exóticas (para nós), mas sem nunca perder o suingue jazz-funk.
Existe a vontade de alguns em rotular a obra de Mulatu como “Afrobeat”, mas este rótulo é enganador: a música de Astatke é claramente derivada de ritmos e instrumentação especificamente etíopes mesclados ao jazz, não algo genericamente “afro” – isto nem existiria enquanto denominador estilístico/cultural válido: a África não é um país como gostam de imaginar os racialistas contemporâneos, não há como comparar Egito com Camarões ou Nigéria (de onde veio Fela Kuti, que cunhou o termo “Afrobeat”), com a Etiópia. Mas como todo produto (cultural ou não) necessita de um rótulo, Ethio-jazz ainda é a melhor opção. O jazz nunca morre: ele se junta a algo inusitado que transcende o problema da interpretação como tratado por Susan Sontag, aquela ânsia de separar forma e conteúdo, dando ao último importância e subjetividade que pode nunca sair da mera teorização ao tentar “entender” e “dissecar” a obra ainda viva de forma a “explicá-la”. Este som é universal, não precisa de explicação, somente de “ouvidos de ouvir”.
Inspiration Information Vol 3 é considerado um dos melhores discos lançados nos 2000’s, uma grande referência nos meus projetos musicais sendo ainda um dos meus discos prediletos para escutar ritualmente numa madrugada qualquer, acompanhado de nada além de uma cerveja 7,2% de graduação alcóolica envolto pelo escuro revelador da sala.
Tracklist:
- Masenqo
- Cha Cha
- Addis Black Widow
- Mulatu
- Blue Nile
- Esketa Dance
- Chik Chikka
- Live From Tigre Lounge
- Chinese New Year
- Phantom Of The Panther
- Dewel
- Fire In The Zoo
- An Epic Story
- Anglo Ethio Suit
Formação:
Piano, vibrafone e arranjo de cordas em Masenqo: Mulato Astatke
Bateria, percussão, guitarra: Malcolm Catto
Baixo elétrico, acústico e guitarra: Jake Ferguson
Flauta, percussão, piano: Jack Yglesias
Guitarra: Adrian Owusu
Piano, Electric Piano [Wurlitzer], Synthesizer [Moog]: Oliver Parfitt
Sax Tenor: James Arben, Shabaka Hutchings
Sax Soprano, barítono, tenor, clarinete baixo: James Allsop
Trombone: Joel Yennior
Trumpet: Byron Wallen
Theremin: Tom Hodges
Lyre [Krar]: Dawit Gebreab
Cordas: Dan Keane
Cordas [Begena], Flauta [Washint]: Dawit Gebreab
Harpa: Kat Arney
Teclado [Electronica] – Tom Hodges