Pelas ruas e becos e bares e quaisquer outros locais suburbanos de Detroit onde pudesse tocar e cantar suas músicas, o sexto filho de um casal de imigrantes mexicanos, Sixto Diaz Rodriguez, poderia ser encontrado numa noite ignorada de terça ou quarta-feira entre 1967 ou 68. Numa daquelas noites o produtor da pequena gravadora Sussex, por total coincidência e imprevisibilidade assiste a uma apresentação de Sixto para meia dúzia de bêbados num boteco, o contratando ali mesmo. Pela Sussex ele gravaria seus 2 únicos discos de estúdio, Cold Fact (1970) e Coming From Reality (1971). Ambos não são apenas 2 álbuns essenciais da música popular: no âmbito pessoal são 2 dos meus discos prediletos, SEMPRE presentes no meu iPod.

Rodriguez, assim como Dylan (do qual também sempre mantenho Bringing It All Back Home à mão), trazia uma riqueza poética rara a suas composições, mas onde este último era por vezes impenetrável, num fluxo de consciência pessoal e intransferível, no qual imagens surreais se misturam como num sonho a ser psicoanalizado, Sixto era direto, sem obscurecer ou deixar dúvidas intencionais acerca da mensagem, cantando sobre a realidade por ele vivenciada ou presenciada.

Cold Fact inicia com aquele que se tornaria seu clássico mais conhecido e que lhe rende o nickname pelo qual seria inúmeras vezes referenciado:
Sugar Man, uma ode a um traficante local (“o homem dos doces”) …
“Sugar man, won’t you hurry
‘Cos I’m tired of these scenes
For a blue coin won’t you bring back
All those colors to my dreams.
Silver magic ships you carry
Jumpers, coke, sweet mary jane”
Por essa letra ele seria censurado na África do Sul (mais sobre isso adiante).
Em Crucify Your Mind versos sobre a carceragem individual geral, erguida na mente, seus personagens, a busca por validação externa, o prazer falso e imediato:
“Were you tortured by your own thirst
In those pleasures that you seek”
Ao cantar as relações interpessoais, principalmente as afetivas, Rodriguez também exibia aquela rara qualidade dos grandes poetas intuitivos: a universalidade sentimental e emocional que permite que você ou eu ou qualquer um se identifique com aquilo que é dito, como em Forget It:
“Don’t say anymore
Just walk out the door
I’ll get along fine
You’ll see
But thanks for your time
Then you can thank me for mine
And after that’s said
Forget it”
I Wonder… quem nunca imaginou, ainda que por breves instantes de solidão após um término, como o outro estará fodendo a própria vida? Ou talvez se dando muito melhor do que você na sua:
“I wonder how many times you’ve been had
And I wonder how many plans have gone bad
I wonder how many times you had sex
And I wonder do you know who’ll be next
I wonder l wonder wonder I do
I wonder about the love you can’t find
And I wonder about the loneliness that’s mine
I wonder how much going have you got
And I wonder about your friends that are not
I wonder I wonder wonder I do”
As crônicas e comentários sociais, sem nunca serem panfletários ou militantemente vazios são uma parte real e vivida da obra de Sixto, como na mistura inusitada de blues e música de ninar em Gommorah (A Nursery Rhyme):
“The ladies on my street
Aren’t there for their health
Welfare checks don’t pave
The road to much wealth (…)
Gommorah is a nursery rhyme
You won’t find in the book
It’s written on your city’s face
Just stop and take a look”
Rich Folks Hoax caberia no paradigma da pós-pós-modernidade (hipermodernidade, altermodernidade ou seria metamodernidade?), enfim, caberia no paradigma de HOJE com pastores mirins da histriônica prosperidade neopentecostal, coaches pregadores de alguma fórmula mágica ideal, formatada para a base da pirâmide social, sempre desesperada por dinheiro, sexo e amor, enquanto nossos universitários socialistas pequeno-burgueses, crendo na fábula de que o Estado irá prover para todos coletivamente, endossa que o mesmo devolva quase nada após subtrair tudo o que todos produzem individualmente:
“So don’t tell me about your success
Nor your recipes for my happiness
Smoke in bed
I never could digest
Those illusions you claim to have going”
Musicalmente Cold Fact tem uma produção simples e efetiva, utilizando instrumentação básica de violão, baixo, guitarra e bateria, com intervenções esporádicas de cordas, metais e synths. O disco vendeu quase nada. Em 1971 após lançar seu segundo álbum, na última faixa, Causes, Sixto prevê seu futuro: ser dispensado da gravadora 15 dias antes do natal. Em 1976 abandona o mercado musical, comprando uma casa abandonada por 50 dólares num leilão da prefeitura de Detroit, onde vai morar com a esposa e as 3 filhas, passando a trabalhar na construção civil (em 1981 Rodriguez se graduaria em filosofia, mas o sustento seu e de sua família veio quase que somente do seu trabalho como pedreiro). Até que em 1997, através de um fórum da internet, sua filha mais velha entra em contato com um fã da África do Sul para esclarecer que seu pai não havia sido morto a tiros, nem se suicidado no palco em 1973, como contavam duas das lendas sobre Sixto repassadas entre os fãs afrikaans, descobrindo após este contato que seu pai era mais popular lá do que o próprio Elvis Presley (em 1971 Cold Fact fora lançado na África do Sul, e em 1976 um lote daqueles discos encalhados foi parar na Austrália, sendo vendidos rápida e espontaneamente, ganhando o status de clássicos em ambos os países). Aquele fã e um outro, juntando suas economias partem rumo aos USA com a intenção de fazer uma busca pelo ídolo que acreditavam estar morto há 2 décadas. Os registros desta busca e tudo que decorreu dela está no documentário Searching for Sugar Man, lançado em 2012 e ganhador do Oscar de 2013 de melhor documentário. Assista.

Em 2022, a justiça norte-americana decidiu a seu favor acerca dos royalties devidos (e nunca pagos), pelo dono da extinta gravadora Sussex, tanto pelos álbuns originais quanto por suas sucessivas reedições. No ano seguinte Sixto morre aos 81 anos de idade, ainda sem possuir um telefone e vivendo naquela mesma casa, outrora abandonada, comprada em 1976 num leilão da prefeitura de Detroit por 50 dólares.

Tracklist:
A1 Sugar Man
A2 Only Good For Conversation
A3 Crucify Your Mind
A4 Establishment Blues
A5 Hate Street Dialogue
A6 Forget It
B1 Inner City Blues
B2 I Wonder
B3 Like Janis
B4 Gommorah (A Nursery Rhyme)
B5 Rich Folks Hoax
B6 Jane S. Piddy
Formação:
Rodriguez – vocais, violão
Dennis Coffey – guitarra, baixo
Mike Theodore – teclados, metais and arranjos de cordas
Andrew Smith – bateria
Bob Pangborn – percussão
Bob Babbitt – baixo
Detroit Symphony (Leader Gordon Staples) – cordas
Leader Carl Reatz – metais (trombones, baritone sax)
Amigos e família de Joyce Vincent e Telma Hopkins – coral infantil em Gommorah
Gravado em Detroit entre Agosto e setembro de 1969.
Arranjado e produzido por Mike Theodore e Dennis Coffey.