Porque Hermeto ao Vivo – Montreux Jazz de 1979 e não Hermeto de 1972, ou Slaves Mass de 1976, Cérebro Magnético de 81 ou ainda Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca de 84? Porque todos estes álbuns são essenciais, e como eu tive de escolher um, vai o Montreux por ser de certa forma o mais “acessível” aos “não iniciados” na obra de Hermeto Pascoal. Sem querer “complicar” os demais – como dito são todos essenciais.
Hermeto ao Vivo – Montreux Jazz, originalmente um álbum duplo, como o título explicita foi gravado no icônico festival suíço de jazz daquele ano de 1979 (uma edição histórica posto que, no ano anterior além de sua edição normal, recebeu uma edição brasileira, o I Festival Internacional de Jazz, realizado por intermédio do pianista e maestro Nelson Ayres, que colocou no mesmo evento Joe Pass e Hélio Delmiro, Elis Regina e Hermeto, Dizzy Gillespie, Chick Corea e todos os grandes nomes escalados para aquela edição tanto lá quanto aqui em SP).

Pintando o Sete, um número com várias notas e acordes por tempo, somando dezenas, abre de maneira cerebral o show após a apresentação dos integrantes do grupo, feita em francês por Claude Nobs, o criador e organizador do Festival de Montreux. Seguem-se Forró em Santo André e Remelexo, que trazem a plateia de volta ao ritmo menos complexo, dançável até, sínteses do estilo de Hermeto, fusão de ritmos nordestinos, principalmente alagoanos e pernambucanos com a linguagem improvisacional tipicamente jazzística (e por falar em linguagem, nesta última Hermeto também demonstra sua capacidade de comunicação com a plateia, inventando uma linguagem onomatopaica na qual dialoga ritmicamente com a entusiasmada plateia). O mesmo artifício de comunicação se segue em Sax e Aplausos, na qual o único ritmo para o solo de saxofone improvisado de Hermeto é o fornecido pelas palmas do público, seguido por um solo de bateria de Nenê e solos de sax tenor e soprano inspirados de Cacau (sempre numa onda bop free mais “nervosa”), e Nivaldo Ornelas (relativamente mais lírico e contemplativo). Lagoa da Canoa, um “forró-bop” a 200 do metrônomo apresenta o sempre virtuoso Hermeto na escaleta, seguido pelo quase bolero de Fátima, no qual dissonâncias acordais colorem uma melodia em princípio relativamente simples: uma das características da música de Hermeto são melodias que o ouvido identifica dentro deste ou daquele estilo, através do inconsciente cultural coletivo mas sempre somadas a harmonias “impossíveis” de classificação (pelo menos se seu referencial for a harmonia funcional tradicional – isto não existe na música de Hermeto Pascoal). Há mais reminiscências ritmo-estilísticas do nordeste ornadas por improvisos jazzísticos livres em Maturi e Quebrando Tudo, duas aulas de comunicação entre banda e solista e de exorcismo daquele “fantasma” que ronda a performance (e os pesadelos) de todo improvisador ou candidato a isto: transpor da mente para o instrumento o que nesta aparece de maneira automática. Forró Brasil além de não quebrar a regra das anteriores desenvolve a universalidade da música de Hermeto com um trecho que remete aos movimentos dodecafônicos e seriais do século XX. Passamos por mais algumas faixas e improvisos que culminam na peça de encerramento, a balada Montreux, composta um dia antes no hotel com apenas baixo e piano elétrico acompanhando a melodia da flauta.
Hermeto Pascoal ao Vivo lembra o abismo que separa os gênios intuitivos dos “criativos” comuns, bom para aprender ou simplesmente ouvir pelos próximos 1000 anos. Não chamavam Hermeto de “campeão” em vão. Aliás o pretérito é enganador: Hermeto está vivo e atuante aos 88 anos, sendo seus álbuns mais recentes Natureza Universal – Hermeto Pascoal e Big Band e Pra você, Ilza, lançados em 2018 e 2024 respectivamente. Ouça Hermeto.



Track list:
A1. Pintando O Sete
A2. Forro Em Santo André
A3. Remelexo
A4. Bem Vinda
B1. Sax E Aplausos
B2. Lagoa Da Canoa
C1. Fatima
C2. Terra Verde
C3. Maturi
C4. Quebrando Tudo
D1. Ilza
D2. Forro Brazil
D3. Montreux
D4. Voltando Ao Palco
D5. E Adeus
Formação:
Hermeto Pascoal: Sax soprano e tenor, Clavinete, Flauta, Piano
Itiberê Zwarg: Contrabaixo
Nenê: Bateria, Percussão, Cavaquinho
Cacau: Clarinete, Sax barítono e tenor, Flauta
Jovino Santos Neto: Piano
Zabelê: Percussão, Cavaquinho
Pernambuco: Percussão
Nivaldo Ornelas: Sax soprano e tenor, Flauta (Participação especial)
Produção, Arranjos e Regências: Hermeto Pascoal