Há vários anos comprei no supermercado um cdzinho que estava em promoção: um daqueles que quase ninguém comprava, Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim. Lançado originalmente em 1967, além das fantásticas versões para standards do jazz e da bossa nova, outra coisa me chamara a atenção: o nome do baterista. Um nome único sem dúvidas: Dom Um Romão (conta-se que deveria ser DoUm, nome do trigêmeo de Cosme e Damião, mas que por razões clericais sugeriu-se a mudança para Dom Um). Logo soube que este camarada era muito mais do que o baterista brasileiro que tocou num disco do Tom Jobim e do Frank Sinatra e possuía um nome único:
Sua biografia profissional também era única.


Dom Um Romão foi o criador do ritmo da bossa nova na bateria, ao acompanhar o ritmo de João Gilberto ao violão no disco Canção do Amor Demais (1958). Um dos artífices do Beco das Garrafas, foi quem revelou Elis Regina para o público daquele lugar, em 1962 fez parte do famoso concerto da bossa nova no Carnegie Hall, foi o baterista do clássico Samba Esquema Novo de Jorge Ben e, após fixar residência nos USA, desenvolveu em paralelo à sua bem sucedida carreira solo uma atuação como sideman que lhe permitiu participar de apresentações e álbuns clássicos de nomes como Tony Bennett, Tom Jobim, Ron Carter, Herbie Mann, Cannonball Adderley, Weather Report, Stan Getz, Astrud Gilberto e uma lista de nomes que não caberia aqui. Seu primeiro álbum solo foi lançado ainda em 1965, mas o foco desta coluna hoje é o seu quarto álbum: Hotmosphere, de 1975.

Hotmosphere é um clássico fusionista mundial: lançado pelo idealista selo Pablo de Norman Granz em 1975, jazz, música brasileira, ritmos e melodias universais executados por personalidades tão diversas quanto Sivuca, Ron Carter, Dom Salvador e Célia Vaz (ver formação abaixo). O álbum abre com Escravos de Jó, composição de Milton Nascimento com os vocais de Sivuca e Célia, além de um solo magistral de trumpete de (talvez), Claudio Roditi (os créditos do álbum não especificam quem fez o quê, infelizmente). Mistura Fina na sequência traz o inconfundível improviso scat de Sivuca ao acordeom, preparando o caminho para a assombrosa versão de Caravan: Dom Um é capaz de simular uma seção de escola de samba inteira sobre a qual se revezam Sivuca (num improviso altamente livre que noz faz lembrar de Hermeto), Ronnie Cuber (saxofonista do primeiro quarteto de George Benson), e Cláudio Roditi. Spring provê um momento de respiro da apoteose rítmica com um tema menos veloz apresentando a guitarra imersa em chorus de Ricardo Peixoto. Pra que Chorar, clássico de Baden Powell demonstra que Dom Um não precisava de um momento específico de solo seu para se destacar. Talvez a composição mais famosa do álbum, por ter sido inserida numa daquelas coletâneas de “coisas exóticas” para DJ’s conhecerem, Amor em Jacumã apresenta um ostinato funk de Dom Salvador baseado em escala blues, vocais de Sivuca e Glória para uma letra descompromissada que enfoca a rítmica, e um solo de sax que eu QUERO que seja do Ronnie Cuber, mas saiba que também pode ser do Sonny Fortune ou do Maurício Smith (qualquer coisa reclamar com quem fez a porra das liner notes incompletas):
Tô na minha, agora
Vou levar a minha nega para Jacumã
Ver o sol descendo da ladeira anunciando que já é amanhã
Se chegar turista, tando lá não quero ver
Se chegar artista, tando lá não quero ver
Se chegar revista, tando lá não quero ler
Cisco Two é uma tentativa de composição mais orquestral no ritmo baião enquanto Tumbalelê revisita cirandas populares e samba de rua. Piparapara traz o álbum de volta ao fusion com os bumbos sincopados de Dom Um e ótimos improvisos de todos os envolvidos. O álbum fecha com Chovendo na Roseira num arranjo fantástico de Célia Vaz, que além da bela orquestração de metais deixa espaços modais (em apenas um acorde), para os sempre incríveis improvisos.
Em resumo: Hotmosphere, assim como toda obra de Dom Um Romão é essencial, não só por ser do que de melhor já foi feito no jazz e na música brasileira como para corrigir o lapso de fama nada incomum deste nome no Brasil.
Tracklist:
A1 – Escravos De Jó
A2 – Mistura Fina
A3 – Caravan
A4 – Spring
A5 – Pra Que Chorar
B1 – Amor Em Jacumã
B2 – Cisco Two
B3 – Tumbalelê
B4 – Piparapara
B5 – Chovendo Na Roseira
Formação:
Violão e Guitarra: Ricardo Peixoto, Sivuca
Backing Vocals: Célia Vaz, Glória Oliveira, Julie Janiero, Sivuca
Baixo (Acústico): Ron Carter
Baixo (Elétrico): Juan (Tito) Russo
Cello: Pat Dixon, Ulysses Kirksey
Clarinete: Lou Del Gatto, Mauricio Smith
Congas: Steve Kroon
Bateria: Dom Um Romão
Flugelhorn: Alan Rubin, Claudio Roditi
Flauta: Lou Del Gatto, Mauricio Smith
Percussão: Steve Kroon
Piano: Dom Salvador
Produção: Dom Um Romão
Saxofone: Ronnie Cuber, Sonny Fortune
Saxofone (Soprano): Mauricio Smith
Trombone: Jack Jeffries, Tom Malone
Trumpete: Alan Rubin, Claudio Roditi
Condução e arranjos: Célia Vaz