Queria propor para você, leitor(a), um exercício de imaginação. Mas a ser feito não com uma imaginação totalmente livre e desvinculada do provável, tratando o imaginado como uma situação impossível ou meramente imaginada. Queria, antes, que fosse um exercício de imaginação no sentido de você pôr imaginativamente na sua própria pele e visualizar a seguinte situação como se efetivamente o imaginado pudesse acontecer com você de fato, por exemplo, amanhã, na realidade em que você vive.
Imagine, leitor, que você sempre morou onde mora atualmente e que todas as suas atividades, lembranças e expectativas sobre a vida – sua vida, a de seus familiares ascendentes e descendentes, a de seus conhecidos e amigos, etc. – relacionam-se diretamente com o local onde você mora. Você tem suas referências de vida atreladas ao local onde mora, e você gosta de onde mora e vive. Você não tem e nunca teve intenção de sair dali, assim como seus próximos. No seu bairro, vocês, sua família e seus amigos trabalham, estudam, têm seu lazer, seus locais de exercício de cultura, de convívio, de religião, etc. E imagine, ainda, que seus avós e bisavós viveram no mesmo bairro construindo suas vidas, o ambiente e a cultura local, e que segundo essa cultura, nada indica que seus filhos sairão dali.
Um dia, chegam representantes do governo federal brasileiro na sua casa, antes de você sair para o trabalho ou para o estudo, e lhe comunicam que você, sua família e toda sua vizinhança terão que ser removidos do bairro onde moram, e que tudo o que havia ali, suas casas, sua rotina, ruas, monumentos, praças, árvores, parte das histórias de vida, das lembranças e expectativas, tudo será destruído para dar uma destinação de utilidade às comunidades indígenas amazônicas.
O poder público, apoiado pela opinião dos indígenas do norte do país, irá destruir a sua casa e o seu bairro para fazer uma grande plantação de mandioca, um grande mandiocário, posto que os indígenas amazônicos estão consumindo cada vez mais mandioca e têm demanda do produto, não conseguindo a produzir por lá. Por isso, o governo vai te remover para uma outra área de uma cidade, área provavelmente nada parecida com a da sua moradia atual, e colocar você, leitor(a), numa casa construída entre outras centenas para abrigar os removidos pela construção do mandiocário, mudando completamente sua rotina, seu ambiente de vida, suas expectativas, e lhe retirando suas referências culturais, eliminando valores simbólicos que você possui onde mora atualmente (“a árvore que meu avô plantou”, “a praça das crianças”, “o mercadinho do Seu João”, “a casa que eu e minha esposa construimos”…) E os representantes governamentais te avisam que você e seus vizinhos não podem fazer nada para impedir isso: os estudos já demonstraram a viabilidade do empreendimento e a licença legal para o mandiocário já está em trâmite.
Estranho? Engraçado?… Confesso ser difícil imaginar com algum grau de probabilidade prática que isso possa acontecer a mim. Você consegue?
Pois é algo similar que já aconteceu e continua acontecendo com inúmeras comunidades indígenas, quilombolas, rurais e comunidades tradicionais em geral das mais variadas espécies e das mais diversas regiões do Brasil e do mundo.
Para ficarmos com apenas um exemplo atualíssimo brasileiro, é o que está se passando hoje e se desenvolverá nos próximos meses e anos com as obras de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Povos indígenas e comunidades ribeirinhas que habitam as margens do Xingú há séculos serão destituídos das terras em que vivem e sempre viveram para a construção da barragem (para que a sede de energia elétrica dos grandes centros urbanos e das indústrias seja alimentada). Eles pagarão um preço muito alto por uma necessidade que não é deles. E isso é recorrente na história. Vejamos:
Os estudos antropológicos e as estatísticas sociais mostram o quanto essas pessoas sofrem com a completa e repentina mudança das suas vidas, em decorrência de empreendimentos de mineração, imobiliários e de construção de hidrelétricas, sobretudo. Grupos étnicos são reduzidos a pequenos percentuais de seu número inicial. Comunidades são desfeitas, perdem sua identidade e têm suas raízes reduzidas a nada. Pessoas morrem pelo abandono político numa terra estranha; pelos conflitos sociais surgidos nas novas localidades para onde são empurradas; pelo assassinato de valores e símbolos de enorme importância para essas pessoas. Tradições, culturas, línguas e histórias são submersas pelas águas das barragens, carregadas aos pedaços junto ao minério nas pás dos tratores, esmagadas pelas vigas de concreto e ferro. Essas pessoas são violentados corporalmente, psicologicamente e simbolicamente pela mudança de vida forçada, pela retirada de suas referências culturais, pelo desrespeito aos seus costumes e aos seus direitos, e em geral assistimos com passividade a essas violências acreditando que seja quase uma espécie de mal necessário.
Que seja um mal, concordo. Mas que seja necessário, não. Pois há aí um absurdo: é que essas pessoas são forçadas a tais situações em prol de algo que eles não precisam, que eles não desejam, que não faz parte da vida deles. Uma outra cultura (a urbana-empresarial-industrial-
As demandas urbanas, contidas no nosso modo de vida atual nas cidades (a que chamamos “desenvolvido” por contraponto ao modo de vida deles a que injustamente chamamos “primitivo”), são pretensamente capazes de justificar com certo grau de necessidade, evidência e justiça as agressões que a nossa cultura dominante e exclusivamente autoreferente causa a essas populações, com o respaldo do poder público, das elites econômicas e da ignorância quase geral da sociedade acerca das peculiaridades dessas comunidades tradicionais e indígenas.
Notemos que uma barragem no rio que perpassa a vida e a cultura dos povos do Xingú é, para eles, talvez muito mais absurda quanto o enorme mandiocário sobre os principais pontos da nossa cidade-localidade, incluindo o terreno da nossa casa.
Como a “bola da vez” é Belo Monte, vale a pena incitar a leitura de artigos sobre construção da barragem em questão. Além dos problemas levantados aqui, há muitos outros apontados por estudiosos, de ordem ambiental, econômica, política e legal, que vale a pena termos em mente ao pensar como os processos de licenciamento estão se dando e quais pressupostos ideológicos estão por trás dos impulsos de “desenvolvimento” em voga. Sob o imperativo desse certo “desenvolvimento”, prezado por uma tendência que se difunde e se faz sentir como natural, óbvia e necessária, estão ocultadas e distorcidas à força muitas alternativas de visão social, de postura política, de geração de energia, de perspectiva cultural e de modos de vida.
É bom perguntarmo-nos:
-Não somos espontaneamente tão “etnocêntricos”, portadores de uma cultura que tem oprimido outros modos de vida?
-Qual desenvolvimento nossa sociedade está procurando?
-Para quem esse desenvolvimento é bom?
-O quê e quem está pagando o preço desse desenvolvimento?
-No caso de Belo Monte, por exemplo, temos o direito de submeter as comunidades indígenas marginais do Xingú a tais situações, para garantir nossas necessidades, que não são as necessidades delas?
-São tão ineficientes ou não compensam de forma alguma outras formas de geração de energia? Ou pode haver mais interesses por trás disso?
-Nosso modo de vida (que entre outras coisas, precisa cada vez mais de energia elétrica) é melhor que o modo de vida de um índio amazônico? Se a gente considera melhor, é melhor em quê e para quem?
-Agora mesmo, enquanto lemos este texto, à nossa volta não há nenhuma luz que podia ser apagada, ou nenhum aparelho que pudesse ser desligado?
-A barragem ou a mineração não está para eles assim como o grande mandiocário está para nós?
-Acumular capital monetário é o único e o melhor modo de organizar a vida prática e de se realizar nesta vida? E se for o melhor modo para alguns, esses alguns têm direito de desrespeitar os demais, submetendo-os às “necessidades” que lhes são alheias?
-Não estamos vivendo conflitos como o narrado no filme “Avatar”? Dado que o filme sensibilizou milhões ao redor do mundo, será que não bastaria que esses espectadores se sensibilzassem para casos reais que estão acontecendo à sua volta para impedir que isso de fato ocorresse?
Infindas perguntas.
(Nota: apenas para exemplificar com um caso, citamos a comunidade indígena Kreenakarore, reduzida a 20% do que era, em menos de dois anos, destruída pela abertura da rodovia Cuiabá-Santarém. [cf. MARTINS, Jose de Souza. A chegada do estranho. São Paulo: HUCITEC, 1993. 179 p. ISBN 8527102196 : (Broch.), p. 61-63.] Créditos da nota: Paula Pimenta Gomes. Outros inúmeros casos podem ser encontrados numa pesquisa rápida pela internet.