Se observarmos o mundo contemporâneo, estando especialmente atentos à sua face de espaço natural habitado e transformado por nós, humanos, deveremos notar que a presença e o atual papel dos objetos técnicos no mundo vivido não podem ser considerados como uma mera adição, ao mundo que aí está, de novos elementos moldados pela atividade humana. Todas as ações e objetos que se tornaram possíveis e foram concretamente realizados por meio das técnicas nas últimas décadas não foram inseridos no mundo como meros apêndices ou simples componentes adicionais. Os objetos técnicos e aquilo que eles nos permitem fazer tiveram e têm o poder de reconfigurar tanto partes físicas do mundo, quanto a vida social cotidiana e a própria experiência humana na radicalidade de sua auto-compreensão.
Nessa medida, a técnica contemporânea nos reconfigurou muitos aspectos simbólicos, sempre presentes na nossa experiência do mundo, relativos a valores, a expectativas e à cultura de um modo geral.
Podemos perceber com clareza, tomando o exemplo da informática, em que medida o homem supera o meramente físico com a técnica e com os objetos técnicos, em razão da face simbólica e imaterial neles presente. Com efeito, a natureza fornece a base bruta sobre a qual se exerce a técnica e com a qual se produzem os objetos. Porém, passamos a criar técnicas e objetos que determinam, por sua vez, modificações de proporções inesperadas para nós mesmos. São operadores de símbolos, geradores de redes, de interconexões à distância, de uma imensa teia gerenciadora de informações – presença sem sono, fome, dor ou corpo próprio, num espaço que não ocupa espaço, num ambiente sem tempo, o virtual.
E, vendo bem, o importante aqui não é o aço, o silício, o plástico em si mesmos. Esses perecem, dão pane, quebram; estão sujeitos à natureza, pois, enfim, são natureza. Já a prodigiosa arquitetura sutil que tais materiais recebem, essa sim é a máxima demiurgia humana. Dessa forma, um software é ainda mais “artificial”, mais produto humano que um hardware; uma transmissão de sinal de televisão, mais que o aparelho televisor.
De fato, o que fere e fascina no objeto técnico em maior medida (ou pelo menos deveria fazê-lo) não é tanto o seu suporte material ele mesmo – fruto de grande engenho, é verdade – mas antes aquilo a serviço do que ele opera e seus efeitos. Até mesmo porque o suporte material dos objetos técnicos não leva consigo o grau de compreensão que sua parte simbólica oferece. Por exemplo: sabemos mais e temos mais domínio e liberdade de manipulação da organização simbólica de um software do que da estrutura e natureza íntima do silício, do estanho, etc. Se quisermos recuperar a terminologia aristotélica, podemos dizer que a forma dos objetos técnicos, sendo dada por seu criador, é a marca humana na matéria inerte.
A maravilha está na imposição de ordem à matéria-prima e naquilo que essa ordem permite ao homem realizar. A ordem é informação e, portanto, incorruptível. Já o ordenado, quebra, torna-se obsoleto. (Há um toque de “eternidade” no computador em que você, leitor, está lendo este artigo!) Portanto, o simbólico e virtual predomina sobre o suporte grosseiro, material e real. Também na tecnologia, elevamo-nos por sobre a realidade. Inconscientemente, defrontamo-nos aqui, como em outros âmbitos da experiência humana, com a primazia do sutil.