A sociedade urbana atual, em função da sua configuração político-econômica e da cultura que se estabelece em torno das estruturas dessa configuração, tem duas atividades como o centro da organização social. Essas atividades perpassam a vida material e simbólica das pessoas: o trabalho e o consumo. Isso significa que a realidade das condições materiais – e até mesmo de algumas condições ideais e valorativas – da vida humana nas cidades nos impõe um determinado modelo de trabalho e um certo padrão de consumo, intimamente relacionados e assentados num modelo de sociedade que em geral assumimos em nosso meio, uns com convicção, outros por apatia. Assim, cada vez mais nossa sociedade se empenha, como quem navega a favor da correnteza de um rio caudaloso, na formação das pessoas como mão-de-obra e como mercado consumidor. Frequentemente, os famigerados “mercado de trabalho” e “mercado consumidor” são os mais importantes pólos de resultados a orientarem a formação cognitivo-cultural das pessoas, a organização das cidades, a escolha de políticas públicas, enfim, a realização da pessoa humana que coabita urbanamente este mundo.
É notório que hoje em dia, desde criança, cada indivíduo da atual sociedade urbana é direcionado, motivado e influenciado em seu desenvolvimento tendo em vista, de alguma forma, as características do mercado de trabalho e as estruturas do consumo próprias da nossa sociedade. Por exemplo, a escolha da formação escolar, as opções de aquisição de conhecimentos, a valorização e a carga simbólica emprestada a determinadas atividades, instituições, profissões e marcas de produtos e serviços, tudo isso está inserido numa enorme engrenagem que mantém em funcionamento o sistema político-econômico capitalista neoliberal globalizado que nos envolve. Além disso, esses direcionamentos aparentemente inofensivos apresentam, em algum grau, um incentivo mais ou menos explícito à manutenção do jogo da concorrência empresarial, da competitividade dos espaços de trabalho, da elevação dos padrões e da quantidade de consumo, entre outras coisas. Trabalho e consumo, na nossa sociedade, possuem características interdependentes.
Nessa esteira, quando se fala aqui do trabalho e do consumo envolvidos no funcionamento da organização social pautada no atual modelo político-econômico, não se trata de qualquer trabalho e de qualquer consumo. Há um modelo de trabalho e um padrão de consumo bem delimitados, com características próprias e de contornos relativamente precisos, segundo a nossa sociedade se organiza, se desenvolve e se compreende. O trabalho e o consumo a que me refiro aqui são diferente, por exemplo, do trabalho praticado entre comunidades rurais mais tradicionais em que prevalece a base de troca de mercadorias e de serviços, em que a agricultura de subsistência ou com mínima produção de excedente ainda é forte e em que o mercado é exercido de modo marcadamente local, com predomínio de produtos de origem regional, baixo nível de processamento e industrialização, constância de padrões de consumo, etc.
Para nós aqui, traços importantes para se pensar o modelo de trabalho e de consumo cuja crítica é proposta são, por exemplo, a economicidade, a competitividade e a idolatria de certo desenvolvimento, temas que dominam os discursos típicos empresariais e do interesse dos grandes capitais em geral. Esses temas têm hoje uma força tal que chega a ser dotada de evidência, baseada em pressupostos assumidos indefinidamente pela sociedade e reafirmados dia a dia, muitas vezes sem qualquer reflexão acerca de alternativas, pela mídia, pelos governos e pelo senso comum. Tais discursos, ainda que irrefletidos, vêm se impondo e se sobrepondo ao discurso e ao espaço de muitos outros sistemas sociais e atividades humanas, tais como o domínio artístico, ambiental, religioso, do lazer, da saúde, da diversidade cultural, etc. Todos esses outros discursos são com frequência eclipsados pela força do discurso do desenvolvimento, da concorrência, da novidade tecnológica. A necessidade e o valor emprestado à criação de postos de trabalho com a instalação de uma grande empresa, por exemplo, em muitos casos, atropela institutos legais como a legislação orçamentária municipal, passa por cima de interesses de outros grupos, tal como comunidades indígenas ou quilombolas que vivem em áreas de interesse econômico, justifica agressões ao meio-ambiente tais como o corte de vegetação de valor significativo e a degradação de nascentes e do habitat de animais silvestres, justifica a transferência de valores públicos para o capital privado através de subsídios, incentivos fiscais, “maracutaias”, trocas de favores na velha e conhecida politicagem, entre outras coisas.
E vale notar que o trabalho realizado no nosso modelo de sociedade, assim como a família, a escola e outros espaços de convívio, é também um lugar de descoberta, do aprendizado e do exercício de relações interpessoais de diversas espécies, e lugar de encontro e superação de desafios intelectuais e emocionais, cuja carga simbólica se emaranha na própria formação da personalidade do trabalhador e se reflete na sociedade como um todo, ao modo de disposições afetivas, padrões de comportamento, opinião pública, etc. O trabalho é, assim, plataforma sobre a qual se exercita a coexistência e se experimenta a praticidade da vida em planos psicológicos e sociais em parte significativa do tempo. O poder do trabalho com a incisão de suas características sobre os indivíduos e sobre a sociedade, ainda que sutil, é poderoso o suficiente para nos preocupar com a direção que ele vem tomando.
Consideremos que há 168 horas totais em uma semana. Teoricamente, durante 56 estamos dormindo. São, portanto, 112 horas em vigília. Se trabalharmos 44 horas semanais, subscritas como normais pela Constituição Federal de 1988, no seu artigo 7º, inciso XIII, temos 40% do nosso tempo ativo diretamente dentro do trabalho, sem contar nesse percentual o tempo gasto no deslocamento residência-trabalho, nos estudos de formação ou atualização, etc. Com isso, é possível notar que o tempo vivido no trabalho há de ser cuidado, tendo em vista a própria realização humana, que a necessidade e as características do trabalho devem ser pensadas no contexto da vida como um todo, nos planos psicológicos e sociais.Com relação ao salário, um dos principais objetivos do trabalho e base do consumo, notemos que não é apenas fonte de subsistência: ele também é o veículo da realização de sonhos e de aspirações pessoais, é peso de medida de grande parte da satisfação com a vida prática em suas condições materiais. O salário tem influência direta sobre a taxa de natalidade, sobre o nível de consumo de bens materiais e imateriais, sobre a organização das cidades, sobre o nível de felicidade desta sociedade que precisa se realizar nas estruturas e ideologias que estão aí. O valor recebido como contraprestação pelo serviço, contribui para a subsistência, segurança, realização de aspirações, satisfação pessoal quanto ao valor de sua força de trabalho…
O trabalho e o consumo têm também, uma função na identidade dos indivíduos e dos grupos: pertencimento, conhecimentos/atividades comuns, consumo dos mesmos bens, status, associação da imagem e da dignidade da pessoa à sua profissão, ao seu local de trabalho, aos lugares que freqüenta para consumir e ao que ele consome. Por isso, os moldes sob os quais se dão o trabalho e o consumo afetam toda a coletividade, em seus patamares subjetivo e social, psicológico e cultural, individual e coletivo.
A obviedade e a necessidade do trabalho e do consumo nos moldes em que são praticados hoje em dia, são criadas e forjadas num certo modelo neoliberal, desenvolvimentista, globalizante e uniformizador, cujo centro valorativo é o capital monetário, expresso na produção e circulação de bens e serviços, e cujo objetivo é, em última análise, a acumulação financeira. Além dos problemas sociais, esse modelo de desenvolvimento acarreta problemas ambientais (exploração agressiva, degradação, lixo), culturais (modismos alienantes, etnocentrismos) políticos (subsídios exagerados ao privado, baixa remuneração ao trabalhador, atropelamento da legislação). Problemas de segurança dos produtos e serviços (origem dos produtos, perícia na execução ou fabricação em massa, riscos ao consumo e ao uso). Assim, podemos falar em função social dos agentes econômicos num sentido muito amplo, na medida em que extrapola os limites do poder diretor das empresas e dos governos, indo para camadas muito mais sutis do que o poder de controle jurídico e político: estruturas culturais e ideológicas, criadas e reproduzidas numa espécie de torpor pela maioria que movimenta verdadeiramente o jogo do trabalhar para consumir.
Sendo assim, sou mais a acreditar e apostar que é preciso repensar as relações homem-trabalho e homem-consumo. Afinal, qual desenvolvimento buscamos? Esse desenvolvimento está apontado para onde? Ele se desenvolve rumo a quê? E será que precisamos mesmo de um padrão de consumo tão alto e crescente e de um modelo de trabalho tão competitivo e exigente como estamos praticando atualmente?
Creio que as pessoas, antes de serem mão-de-obra e consumidores, são gente, com histórias, desejos, problemas e possibilidades abertas face ao mundo de modo a priori; que toda relação de trabalho afeta uma vida humana que oferece sua força de trabalho para se realizar materialmente nesse mundo; que os padrões de consumo e o desejo de consumo generalizado da forma como vem se dando, vêm de fora e tem raízes culturais e políticas nem sempre óbvias, necessárias e livres de interesses mesquinhos e alienantes. Ao que parece, os moldes atuais predominantes do trabalho e do consumo não atentam para inúmeras características sutis da realização humana, mantendo-nos entorpecidos e sem reflexão acerca da função do trabalho e das causas e conseqüências do consumo, privando-nos de ter à vista, como igualmente possível, a enorme gama de objetivos de vida que estão à nossa disposição. Ficamos eclipsados pela tendência que nos é imposta de acumular dinheiro e bens para poder consumir mais bens e serviços, ainda que para isso tenhamos que trabalhar nos moldes que o mercado prescreve, estudar os conhecimentos e práticas que o mercado demanda, consumir o que o mercado promove, ser como o mercado e o capital querem.
Pergunto, por que não temos uma visão mais humana das relações de trabalho, que propicie mais realização, mais justiça, melhor distribuição de renda, e, nesse esteio, menos exploração, menos constrangimento social em prol de padrões de consumo, de utilização exploratória de recursos minerais e de visões de mundo pautadas em verdadeiros institutos da cultura do capital da economia atual, tais como a acumulação, a competitividade, as leis do mercado? Será que não temos a necessidade de ver o discurso da humanidade se sobrepor ao discurso do lucro, da competitividade, dos economismos e das modas?
O discurso assentado unicamente nos pilares do mercado, do lucro, do dinheiro, é um discurso desumano para quem necessita trabalhar para sua subsistência, para quem não possui reserva financeira alguma ou bastante escassa, para quem se enquadra em classes mais pobres, muitas vezes desprovido de escolaridade, de experiência profissional, de reconhecimento social e de capital simbólico. Por isso, é preciso elevar o nível de consciência política e social. Pôr a claro mais traços ideológicos que a política e a economia criam e estruturam como modos hegemônicos de exercício de trabalho, de padrões de consumo, de expectativas de realização de vida, enfim, como cultura hegemônica, forjada segundo determinados interesses não democráticos, não explícitos e socialmente desproporcionais.
Tratar bem os funcionários não é algo a que se emprenhar apenas para aumentar a produtividade e a lucratividade da empresa através da satisfação dos funcionários, tal como preservar o meio-ambiente não deve ser ação que se realiza apenas para expor certificações ISO no seu marketing e melhorar a imagem da empresa. Os fins éticos e os ideais da razoabilidade, essenciais das noções de tratamento humano, amplamente digno e de preservação ambiental, estão sendo instrumentalizados e postos a serviço das regras do mercado, utilizados como ferramentas momentâneas para o marketing, para a ludibriação mercadológica, para a fantasmagoria das marcas e dos produtos, enfim, estão se tornando meros meios para os fins absolutistas do atual sistema econômico: o lucro, a acumulação e a competitividade.
Podemos dizer que vivemos num modelo de sociedade que gira com enorme força centrípeta em direção ao capital e, tendo isso em mente, perguntarmo-nos, afinal, para que esse padrão de consumo e esse modelo de competitividade? Por que assim? Quem escolheu isso? Isso é bom para quem? Como anda a saúde da nossa sociedade e qual saúde queremos para ela? As escolhas e assunções realizadas nessas questões implicam em delinear estruturas fundamentais da vida – materiais e simbólicas – e escolher a direção que pretendemos seguir e construir daqui adiante. Ainda que haja melhorias visíveis em várias condições materiais de vida das pessoas, inclusive das camadas mais pobres da população, os problemas (visíveis e invisíveis) de diversas ordens continuam enormes demais para nos felicitarmos por algum sucesso dos nossos padrões de trabalho e consumo.
Felipe Soares possui formação em Filosofia, tendo obtido a Licenciatura e o Bacharelado, com formação complementar em Letras e Ciências Humanas, em 2005 e o Mestrado, na linha de Lógica e Filosofia da Ciência, em 2008, pela UFMG. Estuda, escreve e desenvolve trabalhos como professor e músico