Che Guevara tem uma frase célebre: “Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros.” O caso do Yorkshire espancado pela enfermeira teve uma repercussão imensa que dividiu opiniões: muitos foram os que se tornaram companheiros de enorme indignação, ante a injustiça cometida ao animal, no vídeo que circulou como uma febre pela internet; outros, dando um passo atrás, julgaram a reação comovida como algo desproporcional ao fato, em comparação a outros tantos casos que merecem a revolta da sociedade e não tem apelo condizente com sua gravidade.
Tamanha foi a repercussão da indignação manifestada pelos expectadores do vídeo do yorkshire e da enfermeira, que essa revolta externalizada, parece ter se tornado uma espécie de paradigma da indignação. No Facebook, por exemplo, é a moda: “Os vereadores de BH aumentaram seus salários. Vamos nos indignar como no caso do yorkshire!”, “Madeireiros mataram uma criança indígena queimada. Vamos nos revoltar contra eles assim como nos revoltamos contra a enfermeira!”, “Sete Lagoas está puro buraco. Vamos cobrar ações do poder público assim como cobramos para o espancamento do yorkshire!”…
Eu gostaria de propor uma observação para o modo de ler esse fenômeno da indignação popular contra a enfermeira que espancou e matou o cachorro. Tenho duas teses que se amarram e serão justificadas abaixo, a saber: a indignação contra o ato da enfermeira foi válido e proporcional, se tivermos em mente as observações que se seguirão; e a cobrança da mesma indignação com relação a outros absurdos cometidos é válida e justa, embora deixe de observar uma característica importante quanto a esse assunto.
O vídeo do espancamento do cão teve tamanho apelo por vários motivos. O animal era pequeno e indefeso; o vídeo mostra sua dor e agonia através dos repetidos golpes e expõe a frieza da mulher que o golpeia na frente da criança, sua filha; quem espanca é uma mulher que é mãe e enfermeira, tipos geralmente associados ao cuidado e proteção; e um motivo dos mais importantes e que passa despercebido: não é comum que vídeos de maus tratos a animais sejam divulgados e assistidos por grande número de pessoas. Cito esse último motivo como fundamental porque é comum que nossa indignação sobre um fato recorrente seja mais forte nas primeiras vezes que tomamos conhecimento dele. Sendo assim, a indignação e a revolta quanto ao espancamento do cachorro foi muito mais forte do que a indignação quanto ao aumento salarial de políticos, por exemplo.
Obviamente, cobrar indignação quanto a outros problemas que vivemos é justo, assim como é justo indignar-se com os crimes da enfermeira (maus tratos a animais e constrangimento à criança). Mas a efusividade desse caso em particular, acredito se dever à excepcionalidade e ao apelo visual do vídeo. À excepcionalidade porque é muito raro que vídeos de maus tratos a animais ganhem tamanha visibilidade e tantas exibições. Ao apelo visual porque todos sabemos, que existem maus tratos a animais de toda espécie, mas em geral, como não são vistos, são ignorados. Basta se pensar que, apesar de saber ou já pelo menos ter ouvido falar da crueldade, da criação e do abate de animais para o consumo alimentar, a imensa maioria da pessoas consome carne sem qualquer culpa ou crítica, e sem qualquer contato visual com a realidade vivida por esses animais, desde seu nascimento até seu abate, passando pelo confinamento, castração, estresse, marcação, corte de chifres/dentes/bicos, transporte, jejum, choques elétricos, insensibilização mecânica ou elétrica, enfim, a coisificação do animal. Esses maus tratos se repetem no caso do tráfico de animais, do uso de animais em experimentos científicos e testes laboratoriais de toda espécie, no treinamento de animais para o entretenimento (rodeios, circos…), na doma de animais para diversos fins (agricultura, carroças), aprisionamento doméstico (gaiolas, aquários…), etc.
Não sei se seria bom ou ruim que repetíssemos sempre, diante das injustiças, a mesma indignação revoltada e apaixonada da primeira vez que tomamos conhecimento delas. Sofreríamos mais, mas lutaríamos mais. Pois a revolta diante das injustiças deve sempre existir e mobilizar as pessoas, qualquer que seja a injustiça. Se a revolta com o caso do yorkshire foi imensa, acho bom, porque abre precedentes para que esses casos de maus tratos a animais ganhem visibilidade, apelo popular e ações do poder público. Os vários outros problemas, crimes e absurdos cometidos por aí, precisam também ganhar visibilidade e serem combatidos, com indignação, revolta e apoio dos órgãos e entidades responsáveis. Mas creio que não podemos taxar de indevidas ou excessivas as manifestações contra o espancamento e o assassinato do yorkshire. Foi mesmo um ato escandaloso e absurdo, ainda que vários outros atos escandalosos e absurdos ocorram diariamente no mundo.
E como abrimos este texto lembrando Che Guevara, podemos encerrar com ele. Por tanto, nos chocarmos com as injustiças e ao vê-las repetidamente se realizarem, corremos o risco de nos endurecermos diante delas. Porém, “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.
Felipe Soares possui formação em Filosofia, tendo obtido a Licenciatura e o Bacharelado, com formação complementar em Letras e Ciências Humanas, em 2005 e o Mestrado, na linha de Lógica e Filosofia da Ciência, em 2008, pela UFMG. Estuda, escreve e desenvolve trabalhos como professor e músico.