A liberdade de expressão sempre foi, no decorrer da história, uma faculdade polêmica. Esteve e permanece no centro das preocupações e dos embates sociais, por questões políticas, religiosas, econômicas, ideológicas, etc. No caso do Brasil vivido hoje, Estado formalmente constituído em suas características atuais pela Constituição de 1988, a liberdade de expressão é um direito fundamental assegurado, com status de cláusula pétrea. Assim dispõe nossa Constituição Federal acerca do tema:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Art. 220º. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
Vale ressaltar que o modo pelo qual é garantida a liberdade de expressão nas democracias modernas foi algo conquistado historicamente, mediante lutas sociais, e dificilmente se encontrará quem se oponha razoavelmente à sua existência. Contudo, embora esse direito à expressão seja amplo, ele não é absoluto. A própria Constituição e a legislação infraconstitucional lhe impõem alguns limites, por exemplo, a vedação ao anonimato, a proibição de incitação ao ódio e à violência, a inviolabilidade da intimidade, entre outros.
É nesse cenário de liberdade de expressão que tem ocorrido recentemente, nos últimos meses, mais precisamente, uma onda de artigos de jornais e revistas e de posts em blogs com algumas características semelhantes: a de traçarem críticas ácidas acerca de temas polêmicos, utilizando-se de ironias, comparações metafóricas absurdas, um tom debochado e um radicalismo não reflexivo, sob a roupagem do que se chama “o politicamente incorreto”. Quem participa de redes sociais, acessa sites veiculadores de matérias e artigos de opinião, ou lê com alguma frequência determinados jornais e revistas, certamente já se deparou com artigos e posts aos quais aqui se fazem referências.
Cito, sem apontar diretamente seus autores ou os meios de comunicações em que foram vinculados, dois textos paradigmáticos para a ilustração do que abordo. Um, publicado numa das revistas brasileiras mais lidas e tradicionais (medíocre e tendenciosa, diga-se de passagem), que ataca de modo grosseiro e raso as relações afetivas homossexuais e a possibilidade do reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O autor chega a comparar a relação homossexual a uma fictícia relação afetiva entre uma pessoa e uma cabra, argumentado que, assim como uma pessoa não pode se casar com uma cabra, uma pessoa não pode se casar com outra pessoa do mesmo sexo.
O segundo texto emblemático, publicado num grande jornal, trata do drama sofrido pelos indígenas da etnia Guarani-Kaiowá, pressionados pelo poder econômico para abandonarem suas terras tradicionais e abdicarem das suas características culturais. O autor, sem qualquer tato antropológico, debocha da situação de iminente genocídio e da mobilização social em torno do tema, manifestada por participantes de uma determinada rede social. Nesse último texto, o colunista chega a corroborar a idéia de que “índio bom é índio morto” e incentivar, sob uma máscara de humor, o desmatamento das reservas indígenas, com a ironia de que teria ele mesmo trocado um canivete falso por toras de mogno com uma tribo.
Há quem diga, com razão e raciocínio arguto para o âmbito econômico, que a intenção dessas publicações escandalosas e demasiado assertivas é apenas uma: ganhar dinheiro. Dando à luz idéias e afirmações disparatadas, de um modo provocador, tais meios de comunicação e seus funcionários – os autores – ganham visibilidade, mais acessos nos seus sites, aparecem na mídia e nas redes sociais, tornam-se mais conhecidos. Com isso, vem mais publicidade, mais venda, mais dinheiro.
Da constatação da existência do interesse econômico por trás das opiniões alardeadoras de preconceitos, muitos consideram e prescrevem que a melhor atitude a se tomar diante delas é o silêncio e a inércia por parte do público leitor. Não comentar, não insurgir-se, não criticar e não compartilhar: o único jeito de não colaborarmos para que a intenção dos autores fraudulentos seja realizada. A atitude sensata seria, portanto, silenciarmo-nos todos diante dos disparates e provocações lidas ou ouvidas nos meios de comunicação, como estratégia para não fazermos o jogo deles, que, em última instância, visa a isto: que as reações dos leitores venham a colocá-los em evidência e a encher-lhes os bolsos.
Com efeito, pode ser que esses colunistas, jornalistas e escritores, de fato, apenas aproveitem do escândalo para lucrar e aparecer. Entretanto, como há muitas ignorâncias e preconceitos defendidos e proclamados aos quatro ventos no nosso dia-a-dia, nas conversas informais, nas brincadeiras aparentemente inocentes, nos discursos orgulhosamente “politicamente incorretos”, etc, é bem possível que aqueles textos reflitam verdadeiramente os pensamentos e valores desses autores, das empresas para as quais trabalham e das classes cujos interesses eles defendem. Enfim…
Diante de tais provocações e dos interesses que se escondem ou se manifestam nelas através dos textos, quero sublinhar uma outra leitura e defender uma outra estratégia de reação, alternativa ao silêncio. Acredito que por cima das publicações em comento, ainda que toda a sua provocação e “preconceituosidade” sejam mera jogada de marketing, a gente constrói coisas boas, por meio da manifestação reativa.
De fato, muita gente só toma conhecimento e se envolve em determinadas questões quando ocorrem essas ondas de comentários, indignações, críticas e compartilhamentos em torno de opiniões e fatos provocadores. Dessa forma, se há gente faturando com isso, danem-se o dinheiro e a indignidade deles. O real lucro é trazer à tona o debate e a crítica; é divulgar e pensar a epidemia de preconceitos e de humor irresponsável que têm feito tanto sucesso nas mídias; é pôr um grande número de gente, de diversas classes e idades, pra pensar e tomar ciência de determinados fatos, nem que seja pelos 20 segundos gastos antes de compartilhar uma manchete no Facebook ou repassar um email para sua lista; é ver alguma mobilização de qualquer pequena forma.
Reagir aos absurdos proclamados nos meios de comunicação não é meramente cair na pegadinha de oportunistas e ficar tecendo crítica da crítica. É notar que a polêmica mexe, sacode, e que mexer e sacodir é melhor que deixar quieto, é mais produtivo culturalmente do que perpetuar silêncios de aceitação. Tais silêncios ratificam-se condescendentes com a ignomínia de quem possui nas mãos os grandes meios de comunicação e de formação de opinião pública. Estes últimos são utilizados às claras para defender interesses muito particulares de determinadas classes, cujos efeitos ofendem e por vezes massacram, direta ou indiretamente, determinados grupos de menor voz, de menores direitos e de menores poderes.
Entendo as críticas que nos prescrevem o silêncio diante das provocações e realmente vejo que, agindo em reação, estamos fazendo o jogo deles. Mas tem esse outro lado, que surge desses debates e ondas de indignação na internet e que promete ser valioso. A balançada que dá parece estar valendo a pena e compensando o lucro que eventualmente os arautos da ignorância e dos poderosos levam para si.
Vejamos. A questão indígena com esse genocídio dos Guarani Kaiowá, o casamento homossexual com o artigo da revista, o direito dos animais com o caso da Yorkshire espancada, a corrupção política com o julgamento do mensalão: todos esses são temas que “bombaram” na internet, que foram objetos de discussões, debates e de mobilização, e colocaram muita gente por dentro do assunto pelo menos por alguns instantes. Acredito que vale a pena movimentar e reagir aos absurdos ditos e divulgados por isso. Além do que, deixar quieto, de pouquinho em pouquinho essas opiniões e visões vão se impregnando no senso comum, nas piadinhas, nos bordões de fala… Hoje é um blog, amanhã um jornal, depois a TV, o programa de humor… Tudo isso vai perpetuando na cultura mediana características e tendências que, baseadas no preconceito, no desconhecimento e no humor irresponsável, trazem prejuízos de diversas ordens para a sociedade e para o mundo. Por tudo isso, acredito que a resistência deve se levantar desde o primeiro momento e, reagindo, fazer valer a liberdade de expressão em mão dupla, buscando responsabilidade, reflexão e discussão acerca do que se diz nos meios de comunicação.
Felipe Soares possui formação em Filosofia, tendo obtido a Licenciatura e o Bacharelado, com formação complementar em Letras e Ciências Humanas, em 2005 e o Mestrado, na linha de Lógica e Filosofia da Ciência, em 2008, pela UFMG. Estuda, escreve e desenvolve trabalhos como professor e músico.