Nas discussões que esse tema levanta, alguns falam em nome de Deus; outros, em nome da Ciência; outros, em nome daqueles que se veriam fisicamente beneficiados com os avanços medicinais; outros, em nome da Ética; outros, com mais discrição e artifício, em nome dos Valores Econômicos que orbitam o desenvolvimento científico. Todavia, uma boa parcela das razões, expostas, em geral, com objetividade e eloqüência, mascaram interesses mesquinhos, preconceitos, dogmas e coisas desse gênero. Basta assistir, com certa crítica, àqueles que geralmente influenciam as altas discussões.
Em todo caso, as questões que estão verdadeiramente na base do problema são bem mais difíceis e amplas que aquelas que envolvem mera adequação de uma prática científica ao nosso sistema legal. Vale dizer, apenas hermenêutica jurídica e visão política não resolvem, a fundo, o problema real. O que é decidido pelos 11 homens da capa preta do STF, por exemplo, é decisão jurídica prática, elaborada segundo o nosso regime de estado de direito, que não põe fim à discussão e às questões fadadas a permanecer sem consenso, tais como: Quando começa a vida? Pode o homem criar e matar livremente um ser em desenvolvimento? Um embrião possui direitos? Devemos garantir a dignidade humana para um aglomerado microscópico de células? O progresso científico deve ter limites? Quais serão esses limites e quem os estabelecerá? Qual será o impacto das novas biotecnologias sobre a auto-compreensão humana e que efeitos éticos e sociais elas irão desencadear a médio e longo prazo?
De fato, as decisões políticas se embasam, segura e inexoravelmente, em mais do que “notório saber”. E quaisquer que sejam as decisões, elas serão motivo de divergências nos diversos planos mencionados – religioso, político, científico, ético… Mas, em suma, com divergências ou consensos, decisões têm que ser tomadas, e só podemos esperar que não elas não criem problemas irremediáveis para o futuro.
A propósito, quero ressaltar 3 curiosidades sobre o tema.
1ª) O plenário do STF, instância máxima do poder judiciário do Estado brasileiro, que se anuncia constitucionalmente laico, ostenta um crucifixo em sua parede principal. Além disso, boa parte dos seus atuais ministros são declarada e abertamente religiosos de determinada fé. Um deles, Carlos Alberto Menezes Direito, por exemplo, é católico militante e faz parte da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro. É comum que decisões nesses asuntos de repercursão geral venha a caber a eles.
2ª) Os cientistas podem ter, e acredito que muitos tenham, de fato, ideais com suas pesquisas, e que realmente se esforcem por obter desenvolvimentos úteis à humanidade. Porém, é necessário lembrar que a descoberta de um revolucionário método de regeneração de tecidos nervosos, por exemplo, renderia elevadas somas monetárias aos seus descobridores e às instituições que custearam as pesquisas, com excelentes rendimentos em torno da patente, conforme o caso. Renderia também prêmios – quiçá um Nobel! –, um lugar honorífico na história da ciência, fama e respeito institucionais, poder e facilidades, melhores postos de trabalho, mais espaço para publicações, mais verbas para novas pesquisas, etc. Ora, as agência de fomento e as instituições de pesquisa não investem absurdos monetários em laboratórios e pessoal porque são boazinhas…
3ª) É notável que haja tanto preconceito e tanto antropocentrismo nas discussões acerca de pesquisas e testes científicos em geral. Por exemplo, as indústrias cosméticas e de produtos de limpeza brasileiras usam, todos os anos, milhares de animais vivos em testes de laboratório com seus produtos – testes exigidos pelos órgãos reguladores, tais como a ANVISA. O sofrimento agonizante pelo qual passam esses milhares de animais em função da nossa vaidade é legal e requisito de comercialização dos produtos. Já usar um amontoado de células, congelado há mais de três anos, de tamanho microscópico, sem possibilidade de desenvolvimento uterino, causa tanto choque e tanta perturbação a nível ético. Ora, cinqüenta cães recebendo nos olhos ou ingerindo, à força, loção pós-barba ou desinfetantes até a cegueira ou a morte deveria causar mais espanto e indignação do que o uso de células humanas em pesquisas que visam reabilitar movimentos de pessoas acidentadas. É fácil se lembrar do dogma atávico: “o homem é o centro do universo!”.
Felipe Soares