A onda de confrontos recentes nos morros cariocas, que vêm sendo exaustivamente noticiada pela imprensa com alguma “espetacularização”, levanta questões bastante radicais acerca de diversos temas políticos e antropológicos, dentre eles o da diferença e o da marginalização.
De fato, o preconceito e a invisibilidade com que frequentemente são recobertas as comunidades que se desenvolveram nas favelas têm raízes históricas bastante profundas, há muito sabidas, mas esquecidas ou ignoradas voluntariamente pela nossa atual sociedade sonâmbula e pelo Estado que, durante décadas, evitou meter os olhos e as mãos nas estruturas sociais política e economicamente carentes que se formavam nos morros e nos subúrbios pobres das cidades. Desses fatos, surgiram problemas sociais cujas raízes não serão extraídas apenas mediante a mobilização momentânea das polícias e das forças armadas, posto que eles – os problemas – estão arraigados também em solos incalcáveis pelos “caveirões” e intangíveis pelas armas: as consciências.
Dois desses problemas, dos mais sérios e sutis sob certo aspecto, são o da diferença e o da marginalização. Quando se diferencia um grupo de outro ou de outros, os atos de separar e discriminar aí praticados, indicando supostas diferenças entre os grupos, tendem a justificar e a dar validade ao discurso e às práticas do grupo maior ou mais forte, que então passa a deter o poder da separação, colocando suas peculiaridades como superiores às do desigual, do diferente, do outro.
A história das favelas também passa por aí. Podemos ter em vista as várias facetas da desigualdade social (econômica, educacional, racial…) para vislumbrarmos o caráter geral das populações que vivem nessas comunidades. O cidadão e a cidadã aqui em questão são geralmente pobres, com baixo nível de escolaridade e de preparação profissional e, em grande parte dos casos, de origem predominantemente negra. Muitos batalham toda a vida em sub-empregos, trabalhos informais ou com baixa remuneração e pouco ou nenhum reconhecimento. A maioria não sente a presença estatal efetiva perto de suas casas: faltam escolas, hospitais, infra-estrutura de saneamento básico e de lazer. A presença mais comum do Estado nas favelas é, em geral, a polícia que, pela atuação histórica de alguns de seus membros até hoje, acabou naturalizando de certa forma a violência nesses espaços.
Isso cria margens e joga pessoas para além delas, que passam a ser marginais em diversos sentidos: marginais à ordem pública prezada pelo Estado, ou marginais ao consumo de determinados bens materiais e culturais, ou marginais ao suporte estatal presente na vida social que se desenrola no modelo urbanístico predominante, etc.
Obviamente, na prática, há diversidade de características em cada comunidade. Ao se falar simplesmente em favela (e em seus moradores), corremos o risco de trazer à mente apenas estereótipos pejorativos de espaços urbanos mais ou menos degradados, moradias precárias, cidadãos marcados por carências, abandonos e pelo convívio com a criminalidade. É preciso superar esse estereótipo, reconhecendo a especificidade dos diversos espaços públicos, os vários graus e modos de organização da vida prática e as diversas formas de dinâmicas e ações sociais e culturais neles presentes, muitas vezes com incrível originalidade e tenacidade na formação humana e no apoio social.
Porém, generalizamos o termo “favela” nesse texto apenas para sublinhar que alguns dos caracteres comumente presentes nesses espaços são de alguma forma socialmente discriminatórios e segregadores; e mais: para recordar que eles foram combinados historicamente, pelas ações e omissões da nossa sociedade e do nosso Estado, e portanto de cada um de nós – nós que muitas vezes não temos consciência dos nossos próprios preconceitos e, quanto ao presente tema, acabamos por nem sequer nos darmos notícia de certas riquezas e diversidades culturais próprias desses lugares, de toda a esperança e força humana presentes nessas comunidades apartadas e abandonadas, sob certos aspectos, pela mão do Estado e pelo suporte social comum aos centros urbanos, e da falta de ambiente de oportunidades necessárias para que o ser humano que lá vive se realize plenamente em suas possibilidades e, a partir dos seus vários potenciais, se insira amplamente no conjunto da sociedade como um todo.
O marginalizado, no sentido daquele posto à margem em sua própria diferença construída pelos outros, sofre historicamente. Ainda que ele não sinta falta premente do que lhe poderia ser presente, em função de sua própria cultura e modo de vida incorporado cuja eventual riqueza o conforta psicológica e socialmente, é nitidamente injusto e indigno que mantenhamos em nossa consciência comum e abstrata, com toda a indiferença, os preconceitos da diferenciação social e os pressupostos que fundam as marginalizações de significante parcela da nossa sociedade brasileira, como ignorando que mediante uma melhor distribuição de renda teríamos uma sociedade melhor.
É bom lembrar que boa parte da América Latina está valorizando governos que lidem diretamente com diferenças, sejam socio-políticas, como no caso do Brasil, sejam étnica-culturais, como no caso da Bolívia, e que façam valer o poder estatal como reconhecedor das origens do povo que vive sob sua insígnia, respeitando as diferenças legítimas (como a identidade e liberdade dos povos tradicionais) e amenizando as ilegítimas (como as abissais desigualdades sociais no plano econômico).
E quanto aos confrontos nos morros cariocas, cuidemos para que a “espetacularização” da mídia e a falta de transparência dos altos comandos da segurança pública não nos distorça o que de fato está ocorrendo, e torçamos para as coisas melhorem significativa e permanentemente para as comunidades que lá residem, com políticas públicas adequadas à realidade vivida em cada caso e à sua plena inserção no conjunto das cidades, respeitanto sempre a cultura e os direitos humanos dos envolvidos.