Dois médicos legistas aposentados do Instituto Médico-Legal (IML) de São Paulo estão enfrentando denúncias do Ministério Público Federal (MPF) por supostamente emitirem laudos falsos relacionados às mortes dos ativistas políticos Sônia Maria de Moraes Angel Jones e Antônio Carlos Bicalho Lana em 1973, durante o período da ditadura no Brasil. A denúncia foi oficialmente apresentada na segunda-feira (28).
De acordo com as alegações do MPF, os médicos Harry Shibata e Antonio Valentini teriam sido os responsáveis por elaborar laudos necroscópicos que omitiram evidências de tortura sofrida pelas vítimas. Adicionalmente, Shibata é acusado de contribuir para a ocultação do cadáver de Sônia, ao inserir informações enganosas que dificultaram a localização do corpo da ativista por parte de sua família.
O procurador da República Andrey Borges de Mendonça, autor da denúncia do MPF, ressaltou que esses atos ocorreram no contexto de um sistema sistemático e generalizado de repressão à população durante a ditadura militar no Brasil. Isso classifica tais atos como crimes contra a humanidade, que são considerados imprescritíveis e não passíveis de anistia.
Caso a Justiça Federal aceite a denúncia, tanto Shibata quanto Valentini poderão ser processados por falsidade ideológica. Shibata ainda enfrenta acusações adicionais de ocultação de cadáver. A denúncia foi dirigida exclusivamente a esses dois médicos, uma vez que os outros indivíduos envolvidos nas mortes de Sônia e Antônio já faleceram.
Contextualizando os eventos
Sônia havia retornado do exílio na França após receber notícias sobre a morte de seu marido, Stuart Edgar Angel Jones, estudante que havia sido vítima da repressão em 1971. Determinada a se juntar novamente à luta de resistência contra o regime militar, Sônia retornou clandestinamente ao Brasil em maio de 1973 e passou a integrar a Aliança Libertadora Nacional (ALN), um dos grupos de oposição mais proeminentes à ditadura.
Foi nesse período que ela conheceu Antônio Carlos Bicalho Lana, membro destacado da ALN e alvo constante das forças militares devido à sua atividade política. Em novembro de 1973, Sônia e Antônio se mudaram para um apartamento em São Vicente, litoral paulista. Contudo, essa localização foi logo identificada e vigiada pelo Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
Os dois ativistas foram capturados numa manhã daquele mês, pouco antes de embarcarem em uma viagem de ônibus para São Paulo. Embora existam versões diferentes sobre o destino final deles após a captura, todas convergem para a conclusão de que ambos foram submetidos a sessões de tortura brutal pelas forças de repressão, resultando em suas mortes.
A versão mais plausível indica que Sônia e Antônio foram mantidos em um centro clandestino na Zona Sul de São Paulo, conhecido como Fazenda 31 de Março, onde foram torturados durante vários dias antes de serem executados a tiros. Seus corpos teriam sido então transferidos para o DOI-Codi e exibidos como exemplo.
Os corpos foram subsequentemente encaminhados ao IML, com as solicitações de exames necroscópicos marcadas com a letra “T”, que se referia a “terrorista”, um termo usado pelos agentes da repressão para designar opositores do regime. Essa indicação instruía os peritos do instituto a omitir quaisquer evidências de tortura nos laudos.
Segundo a acusação do Ministério Público, Shibata e Valentini teriam seguido essa instrução. Em seus laudos, os médicos teriam omitido qualquer menção a agressões, limitando-se a afirmar que as mortes foram causadas por ferimentos de projéteis. Essa narrativa corroborava a versão oficial de que os ativistas haviam morrido em confronto com as forças de repressão.
Essa narrativa se baseava em uma encenação conduzida pelos próprios membros do DOI-Codi na região de Santo Amaro, Zona Sul de São Paulo, após as mortes de Sônia e Antônio. Essa encenação envolveu simulações de perseguição, tiroteios fictícios, uso de munição não letal e policiais se passando pelas vítimas.
Os corpos dos ativistas foram enterrados anonimamente no cemitério Dom Bosco, em Perus, Zona Norte de São Paulo. O atestado de óbito de Sônia foi preenchido por Shibata apenas com o codinome que ela utilizava nas atividades da ALN, Esmeralda Siqueira Aguiar, mesmo sabendo da verdadeira identidade da vítima.
Essa ação impossibilitou que os familiares localizassem o corpo de Sônia. A ossada dela só foi descoberta em 1991, juntamente com os restos mortais de Antônio. Os relatórios necroscópicos após a exumação e a análise de fotografias tiradas logo após as mortes confirmaram as omissões nos laudos preparados por Shibata e Valentini.
Durante a ditadura, o IML colaborou intensamente com os órgãos de repressão. Shibata já havia enfrentado oito denúncias do MPF por falsificar laudos cadavéricos de ativistas políticos, incluindo o do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975 sob custódia do DOI-Codi. Essa é a terceira denúncia do Ministério Público contra Valentini por práticas semelhantes.
Da redação
Fonte: Itatiaia